No dia 7 de maio, há 20 anos, foram publicados os decretos-lei n.º 11 e 12/2001, que definiram os princípios de atuação da instituição universitária e autorizaram-na a instalar-se em Cabo Verde. Sem perda de tempo – nesse mesmo dia – a Universidade recebeu os primeiros alunos no Curso de Sociologia.
I
Filtros da memória institucional
Em abril de 1998, o Presidente do Instituto Piaget de Portugal visitou Cabo Verde e manteve conversações com as autoridades educativas, a quem comunicou o interesse e a intenção de instalar uma instituição universitária no país. Um ano depois, em 30 de abril de 1999, foi assinado o Protocolo de Acordo entre o Ministério da Educação de Cabo Verde e o Instituto Piaget, que legitimou a criação da instituição universitária privada no país.
A conjuntura era favorável a essa pretensão:
– O aumento da frequência no ensino secundário (anos 90) exercia uma pressão na procura de ensino universitário, inatingível para muitos estudantes, devido às dificuldades de acesso a bolsas de estudos e a créditos bancários;
– O ensino superior local1 afirmava-se visando a sua inserção na anunciada Universidade de Cabo Verde, objeto de inúmeros estudos, avaliações e encontros onde se indagava uma visão estratégica concertada. Num desses encontros, o Fórum sobre o Ensino Superior (setembro de 1999), recomenda-se “a diversificação do financiamento entre fontes públicas, privadas e cooperativistas envolvendo o sector privado de forma mais intensa no processo de criação do ensino universitário”2;
– Em fim de ciclo político (quinta legislatura), em 7 de agosto de 2000 foi criada a Universidade de Cabo Verde, decisão que não seria logo concretizada;3
– No ano seguinte, 2001, a Universidade Jean Piaget de Cabo Verde inaugura a formação universitária no país.
A aceitação da nova instituição é comprovada pelo crescente número de alunos. Tendo iniciado em maio de 2001 com 57 alunos, em outubro do mesmo ano recebeu inscrições de 300 estudantes em sete cursos de licenciatura4. No ano letivo seguinte já liderava a frequência escolar no ensino superior, com 42,1% dos efetivos (651 alunos), seguindo-se-lhe o Instituto Superior de Educação com 36,5 pontos percentuais (564 alunos)5.
II
Filtros da memória pessoal
Sendo esta a 39.ª crónica que escrevo na coluna “[Re]cortes no tempo” é a primeira em que me envolvo pessoalmente, através de memórias que guardo de seis anos em que trabalhei na Universidade Piaget (2002-2008). Do emaranhado de recordações, filtrei as que mais me marcaram e valorizaram pessoal e profissionalmente. Foram tantas, mas vou-me restringir a três apontamentos.
Primeiro:
O bem-estar e o rigor
Lecionar nesta instituição foi um permanente desafio e um teste à minha capacidade de adaptação a novas solicitações, a temáticas desafiantes e completamente novas – Metodologia Científica; Pensamento Crítico, Ciência e Sociedade; História da Arte, entre outras… Tive de estudar muito. Encontrei na Universidade o bem-estar e o rigor institucional que sempre ambicionei. Nos gabinetes, na cantina, no jardim, na biblioteca, no laboratório de educação digital, o ambiente era o adequado para preparar aulas, investigar e conviver.
Julgo que um dos fatores, que concorreu para a criação desse ambiente verdadeiramente universitário, deve-se à instituição ter nascido num edifício construído de raiz para os fins a que se destinava, logo, devidamente planeado, organizado e apetrechado.
Estar no campus não era tão-somente um imperativo do horário, uma obrigação, mas uma ocasião de formação pessoal, de aprendizagem e de partilha académica. Aprendi a trabalhar com novas ferramentas, metodologias e protocolos. Atualizei-me.
Segundo:
Cabo Verde, objeto de estudo
Fui confrontada com uma nova realidade: ‘aprender-ensinar-avaliar-aprender-ensinar’ pelo processo de convergeciência (conceito de António Nóvoa), ou seja, a ciência que se faz a partir da convergência de disciplinas e abordagens. A ponte entre essas valências foi a pesquisa orientada para a construção de um pensamento crítico da realidade cabo-verdiana.
Prova desta asserção, os planos de estudo continham unidades curriculares que incidiam na diversidade científica, cultural e artística do país. São exemplos as disciplinas: “Génese e Organização do Sistema Educativo Cabo-Verdiano”, “Geografia Biofísica de Cabo Verde”, “Didática da Língua Materna”, “Sociologia dos Modos de Vida Cabo-Verdiano”, “Etnografia e Património Artístico e Cultural Cabo-Verdiano” e “Vulnerabilidade Social em Cabo Verde”.
Terceiro:
Formar o seu próprio corpo docente
Na Uni Piaget tive a oportunidade de privar com verdadeiros académicos, com uma visão transdisciplinar e internacional. Fui sempre orientada por uma Professora Catedrática, a Doutora Estela Lamas e com ela (e com os colegas de Ciências da Educação) apercebi-me (entre outros deslumbramentos) da importância da Pedagogia Universitária, não numa perspetiva técnica, mas como fundamento teórico do trabalho com os estudantes a partir do conhecimento e do trabalho conjunto sobre o conhecimento.
A valorização do talento e da dedicação nos percursos dos alunos (medidos pelas classificações) e dos professores foi uma das marcas diferenciadoras da política de recursos humanos nesta Universidade. Correndo-se o risco de uma eventual endogamia académica, prevalecia a meritocracia. Aos estudantes melhor classificados era dada a oportunidade de ingressarem num estágio de docência universitária, podendo alguns integrar a carreira académica – monitores, depois assistentes, hoje professores com doutoramento. Os professores eram estimulados a prosseguir os estudos nos níveis de mestrado e doutoramento.
Nota final
Por desconhecimento de estudos de impacto da inserção da Universidade Piaget no ensino superior nacional, resta-me a perceção de que a primeira instituição universitária de Cabo Verde concorreu para o desenvolvimento das cidades onde se instalou – Praia e Mindelo –gerando mais conhecimento, mais emprego, transferência de saberes e de tecnologias e novas abordagens para o necessário debate sobre o desenvolvimento do ensino superior no Arquipélago.
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1 ISE - Instituto Superior de Educação, ISECMAR - Instituto Superior de Engenharias e Ciências do Mar, INIDA - Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Agrário, INAG - Instituto Superior de Administração e Gestão.
2 DGESC (1999), Fórum sobre o Ensino Superior em Cabo Verde – subsídios para uma visão estratégica do ensino superior em Cabo Verde. p. 4.
3 A Universidade de Cabo Verde foi re-criada pelo Decreto-Lei n.º 53 em 20 de novembro de 2006.
4 Cursos de Economia e Gestão, de Gestão de Hotelaria e Turismo, de Ciências da Educação e Praxis Educativa, de Engenharia de Sistemas Informáticos, de Informática de Gestão, de Psicologia e de Sociologia.
5 Plano Estratégico para a Educação, fevereiro 2003, Ministério da Educação, p. 106.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1016 de 19 de Maio de 2021.