O Regime de Partido Único segundo José Tomaz Veiga - I

PorMário Silva,24 mai 2021 6:59

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​A «Democracia Nacional Revolucionária» – O Projecto Totalitário do PAIGC-CV – Cabo Verde 1975-1990, livro de José Tomaz Veiga, recentemente editado pela Livraria Pedro Cardoso, constitui um clássico, no verdadeiro sentido da palavra.

Há clássicos que têm este estatuto conferido pelo tempo, mas há clássicos que nascem com este estatuto estampado no rosto, pelo seu conteúdo e pelo passado da matéria que abordam. Assim, daqui a vinte ou cinquenta anos, quando se estudar o regime de partido único, seja em que perspectiva for, nenhum estudo sério pode ignorar este ensaio.

É sabido que nas democracias consolidadas impende sobre figuras que exerceram certos cargos públicos, ou mesmo privados de grande relevo, o dever de escrever, de informar e de esclarecer sobre a sua experiência, o que muitas vezes pode constituir contributos para a história política, económica e social, ao mesmo tempo que possibilita a melhoria e consolidação das instituições; entre nós, não existe esta cultura. Pelo contrário, num meio pequeno e de cumplicidades várias, o silêncio perturbador e deturpador impera. Apenas um exemplo: muitos investigadores têm perguntado, quantos cabo-verdianos estiveram em Conacri? Quantos Cubanos?

Ninguém quer esclarecer este assunto; de forma mais clara: os dirigentes do PAIGC/CV não falam destes e de outros assuntos considerados sensíveis, não obstante ser hoje pacífico que os cidadãos têm o direito de conhecer a verdade, como parte da sua consciência identitária.

Se é verdade que alguns livros já foram escritos sobre a I República, esta obra tem o condão de nos trazer uma reflexão profunda sobre a ideologia do partido único, através de uma pesquisa aturada, paciente e bem fundamentada.

Como novidade digna de ser assinalada, José Tomaz Veiga abre pistas novas sobre fontes de conhecimento deste período, porquanto se tradicionalmente as obras publicadas até aqui socorriam-se dos Jornais, dos Boletins Oficiais, dos documentos do PAIGC/CV e depoimentos cruzados e testados de pessoas várias, ele foi procurar as Actas do Conselho de Ministros de então, para apresentar, confirmar, analisar factos e permitir conclusões sólidas e irrefutáveis.

O Autor afirma pretender apenas contribuir para ajudar a dissipar a imensa e espessa neblina que foi lançada sobre a realidade deste período. Na verdade, se o discurso de certos sectores vai no sentido da exaltação do regime de partido único, como o da construção do Estado, o que se omite é a natureza do Estado e do Regime. Eis a questão! E o Autor é firme a este propósito: tratou-se de um «regime totalitário que manietou e amordaçou os cabo-verdianos, impôs-lhes a sua ideologia como verdade absoluta e inquestionável, um regime que suprimiu a liberdade e procurou aprisionar a mente dos cabo-verdianos».

É mister registarmos que estamos perante uma obra honesta, a dois níveis: primeiro, José Tomaz Veiga assume a sua participação activa na luta pela independência e a sua militância no PAIGC, de 1970 a 1979 e, por inteiro, o seu passado político; segundo, reconhece que muita coisa positiva foi feita neste período, especialmente na área social.

O Autor demonstra um impressionante conhecimento da história e da filosofia política de esquerda, o que lhe permite informar-nos com naturalidade que, contrariamente ao que reivindica o PAIGC-CV, a «ideia de democracia nacional revolucionária nada tinha de original, por ter sido inventada durante a conferência de 81 partidos comunistas, realizada em Moscovo, em Novembro de 1960, o que revela, desde logo, o enraizamento da ideologia do PAIGC-CV na ideologia dos regimes comunistas». Ora, o projecto totalitário do referido partido iniciou-se em Dezembro de 1974, com a ocupação da Rádio Barlavento e subsequente prisão, deportação e exílio dos principais dirigentes de outros partidos.

Se o Autor já nos tinha demostrado a sua juventude marcada pela cultura política de esquerda, revela agora o seu conhecimento das teorias políticas contemporâneas sobre a democracia e o Estado de Direito.

Partindo de Raymond Aron, analisa detalhadamente cinco elementos do fenómeno totalitário ideal, à luz da realidade cabo-verdiana, não sem antes pontuar que nenhum atingiu o totalitarismo «ideal», perfeito, salvo talvez o da Correia do Norte ou o Cambojano. Se é certo que nem todos os regimes de partido único são totalitários e, de entre estes, existiram e existem vários com intensidade política diferente, o de Cabo Verde foi seguramente totalitário, apesar de ter falhado a criação «do homem novo de personalidade desenvolvida». A obra introduz ideias novas que os estudos mais significativos sobre o totalitarismo não costumam ponderar: a dimensão diminuta do território de cada Estado e a sua dependência económica.

Neste sentido, afirma que país é minúsculo, a sua economia inteiramente dependente de recursos externos, principalmente do mundo ocidental e isto constituía um entrave importante, que cerceou a liberdade do PAIGC/CV na construção do seu projecto de domínio da sociedade. Daí ter criado um regime totalitário à medida do País. A Autor analisa, às vezes com minúcia, os cinco elementos referidos: o exclusivo da actividade política legítima a um partido único; a autoridade absoluta à ideologia do partido único que se transforma em verdade oficial do Estado; o monopólio de toda a comunicação social, ou seja, dos meios de persuasão; a utilização do terror policial e ideológico; o Estado como o principal agente económico.

O PAIGC/CV dava muita atenção aos programas escolares e à formação dos professores e intelectuais, numa política de educar os educadores. O trabalho de educar os educadores foi muito bem feito! O País pôs fim ao regime totalitário, mas o grau de doutrinação política que lhe é inerente foi tão intenso, que o Autor alerta-nos para o seguinte: «ainda hoje, 30 anos após a queda do regime de partido único, os efeitos da doutrinação política intensa levada a cabo durante os 15 anos iniciais pós-independência, são visíveis, por exemplo, na forma como os cidadãos se relacionam com o Estado, na sua visão negativa da iniciativa privada, na linguagem e nas concepções dos políticos de todas as correntes, na própria linguagem corrente».

Continua no próximo número

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1016 de 19 de Maio de 2021.

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Autoria:Mário Silva,24 mai 2021 6:59

Editado porAndre Amaral  em  3 mar 2022 23:20

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