Do debate parlamentar ninguém espera que saiam acordos ou compromissos de acção conjunta. Mas, pelo menos, devem servir para iluminar os desafios que se colocam ao país, revelar a complexidade das questões postas a todos e, sendo possível, deixar pistas para eventuais soluções ou caminhos a trilhar para ultrapassar a encruzilhada onde o país se encontra de momento.
Da parte das pessoas que pela comunicação social vão seguir o debate, o mais natural é que haja uma postura expectante no sentido amplo em que observam, estão atentas, preocupam-se, põem-se na posição de vigilantes e há o desejo que, qualquer que seja o caminho escolhido, tudo corra bem. Passaram somente três meses que o eleitorado deu uma maioria ao governo para lidar com uma das situações mais difíceis vividas em Cabo Verde. Mesmo com o mal-estar actual causado em parte ou intensificado pela situação pandémica, há a confiança em algum grau de que dificuldades poderão ser ultrapassadas e que soluções duradoiras e sustentáveis serão eventualmente encontradas.
Pode-se estar a viver momentos difíceis a vários níveis – económico, social e até psicológico, mas a verdade é que no domínio do político o ambiente numa certa perspectiva poderia ser considerado privilegiado. O governo está no início de um mandato de cinco anos, as próximas eleições com possibilidade de impacto real na governação só vão acontecer daqui a quatro anos e a oposição está a dar os primeiros passos na reestruturação que terá que fazer após uma liderança desastrosa de mais de cinco anos. Por outro lado, com a pandemia e a maior dependência do Estado, resistências a uma acção decisiva do governo para se ir além do status quo dificilmente poderão vir da própria sociedade civil. O ambiente excepcional, se favorável ao exercício do poder sem obstrução, traz, porém, consigo maiores responsabilidades. A qualidade da liderança mais do que nunca será escrutinada. Falhas em se mostrar à altura dos desafios serão seguramente punidas de forma mais severa.
Hoje é claro para qualquer observador que para o bem-estar dos países é mais importante ter uma liderança visionária e competente do que ser dono de recursos naturais ricos como o petróleo ou outros minérios com alta procura mundial. A grande questão que se coloca a todas as economias é como evitar que constrangimentos de crescimento as coloquem numa armadilha dentro da qual uns mesmo com ajuda externa, outros com transferência de fundos da União Europeia e outros ainda com venda de recursos naturais não têm como impedir o empobrecimento relativo marcado por grandes desigualdades sociais e por bolsas crescentes de pobreza. E sem resolver esta questão não se consegue acompanhar a dinâmica desenvolvida pelos países que na base de acréscimos contínuos em produtividade e competitividade melhoram de forma sustentada o nível de rendimento das suas populações. A marca de uma liderança capaz nos tempos de hoje passará certamente por criar condições para fugir à armadilha. Crucial para isso será saber identificar os constrangimentos que a enformam e a mantêm ao longo do tempo e que seguramente têm origens históricas e sócio-culturais e agir de forma consequente para os ultrapassar.
Em Portugal, na semana passada, em sede do debate sobre o estado da nação, a grande questão foi identificar o que vem impedindo a convergência de Portugal com a Europa apesar dos enormes recursos transferidos ao longo de décadas. Este país está na iminência de receber somas volumosas no quadro do que se convencionou chamar de bazuca financeira e é grande a preocupação de não se repetir os erros anteriores. O Primeiro-ministro português disse que “os próximos anos vão ser decisivos e que é necessário mobilizar todas as energias e forças para recuperar e reconstruir o país, aproveitando a chance actual de dispor de recursos disponibilizados pela Europa”. Também na Itália, ao ir buscar o célebre e competente Mario Draghi para o governo, e noutros países está-se a concordar que é de suma importância assegurar lideranças que percebam o seu papel no mundo de hoje e em particular na actual conjuntura da crise pandémica. Papel esse que passa por renovar a ideia de servir com dedicação e competência e não se deixar cair na tentação de se servir do cargo, abrindo portas à corrupção e mantendo o país preso aos constrangimentos que não o deixam sair da armadilha do crescimento rasteiro e do empobrecimento garantido.
Em Cabo Verde, a conjuntura actual dos grandes desafios derivados da crise pandémica, mas também de uma maior facilidade na movimentação política, constitui um especial desafio ao governo. Se não conseguir ver as oportunidades e ousar fazer as reformar a todos os níveis que se impõem a sua fragilidade ficará patente para todos. Se pelo contrário souber aproveitar a crise e ser capaz de movimentar o país com reformas e engajamento das pessoas, das empresas e da administração pública poderá fazer história. Os tempos e a sua crise são aptos a revelaram talentos e prestações muito especiais. Há que pôr de lado as tentações vulgares para o eleitoralismo permanente a inquinar as relações dentro do Estado e entre o Estado e as autarquias numa perspectiva que protege interesses corporativos nos organismos públicos e favorece derivas autocráticas nos municípios. Todos sairiam a ganhar se uma reorientação da política finalmente trouxesse a economia que pudesse renovar a esperança de que, não obstante a pandemia e as suas sequelas, dias melhores poderão estar à frente.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1026 de 28 de Julho de 2021.