O ambiente de consenso próprio de situações de emergência já começou a ceder lugar a desacordos em várias matérias designadamente como e quando proceder ao desconfinamento e à abertura da economia. A agitação social e política que se vê, por exemplo, na Espanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos espelha essa dinâmica. Depois das subidas de popularidade que quase inevitavelmente quem está no governo a gerir a crise acaba por obter, nota-se a preocupação da oposição em ganhar outra vez protagonismo e em cumprir plenamente a sua função de fiscalização do governo e de promotor de ideias, perspectivas e políticas diferentes das defendidas pelo executivo. E é bom que assim seja, porque mesmo em estado de excepção não há suspensão da democracia. Para além disso o desafio de construir o futuro no pós-covid-19 tornou-se mais complexa e precisa da participação de todos, mas de uma forma livre e plural.
Estados de emergência, particularmente aqueles provocados por ameaças existenciais do tipo que o coronavírus representa, convidam a um certo unanimismo e servem de pretexto para derivas autoritárias. Com o foco em salvar vidas, tende-se a inibir perspectivas diferentes das preconizadas por quem está a dirigir os esforços de toda a colectividade. Igualmente com a disponibilização de todos os meios possíveis, em nome de maior eficácia na mitigação dos efeitos da pandemia, surge a tentação de fazer da concentração pontual de poder algo mais durável e talvez permanente. É de esperar que a tendência seja essa na medida em que estados de excepção, pela sua própria natureza, invariavelmente levam à deslocação de poder para o executivo na proporção inversa em que se vê diminuir o poder do parlamento e se verifica a compressão dos direitos dos cidadãos. Por definição, são estados temporários mas ninguém garante que não apareça quem queira tornar permanente uma nova configuração das competências dos órgãos de soberania com prejuízo para o parlamento, poder judicial e para os próprios indivíduos.
Isso está visivelmente a acontecer na Hungria de Viktor Orban com a subalternização do parlamento, com as tentativas de submissão dos tribunais e os ataques às minorias. Nos Estados Unidos e no Brasil está-se a ver como nenhuma instituição vai ficar ilesa de todos os ataques populistas e demagógicos que lhes são dirigidos diariamente. Mesmo nas democracias onde não são perceptíveis ataques ao Estado de Direito a coberto da “guerra” ao coronavírus é notório que no futuro próximo o poder executivo vai ficar mais forte e que, devido à recessão económica junto com altos níveis de desemprego, os indivíduos e a sociedade civil vão passar a depender mais do Estado. Conter os efeitos dessa tendência é um dos grandes objectivos da política no mundo pós-pandemia da covid-19. Os sinais de regresso da política são por isso bem-vindos. Não devem, porém, ser um regresso à política do antigamente que deixou bem claro as suas falhas, limitações e inadequações na revelada precariedade e vulnerabilidade de largas camadas da população constatada nas últimas semanas.
Em Cabo Verde, a Assembleia Nacional reúne-se na quarta-feira, dia 27 de Maio, com uma ordem de trabalhos densa e mais em linha com o que se verifica no período pré-covid-19. Até vai ter debate com o Primeiro-ministro o que não acontecia desde 19 de Fevereiro. O governo e a maioria parlamentar sempre que questionados sobre a ausência do PM justificaram a indisponibilidade do primeiro-ministro com as exigências da luta contra a covid-19. Em democracia porém as causas públicas ficam sempre prejudicadas quando são subtraídas de uma forma ou de outra à fiscalização legítima do parlamento. A eficácia do governo depende da confiança que granjear e conservar junto da população para que esta siga as suas orientações e cumpra as suas instruções. Contribui para essa confiança a disponibilidade do governo em responder pelas suas acções e explicar-se perante a Nação em sede do contraditório como acontece no parlamento. Em plena segunda guerra mundial o parlamento inglês, a grande referência dos regimes parlamentares, não deixou de se reunir, nem Churchill se esquivou a ir ao parlamento para justificar a condução da guerra. O problema é se com a desconfiança reforçada entre as bancadas por causa da subalternização do parlamento se venha ainda a constatar menos disponibilidade dos partidos para renovar a forma de fazer política e poder assim enfrentar os desafios enormes do mundo pós-pandemia.
A crise da covid-19 deixou a nu a precariedade da existência de muitos e as profundas vulnerabilidades ainda existentes em particular nas populações rurais e nas cinturas urbanas do país. Os efeitos socio-económicos imediatos da crise e a perspectiva do prolongamento da ameaça do coronavírus por um, dois ou mais anos, dependendo de vacinas e medicamentos antivirais que forem disponibilizados, obrigam a uma radical mudança de atitude dos partidos políticos. Não se pode realmente continuar a fazer mais do mesmo. A política não pode resumir-se a quem dá ou promete mais. Não deve ficar por quem instiga mais, quem se indigna mais e quem denuncia mais. Algum sentido colectivo de responsabilidade sobre a situação real do país neste ano dos 45 anos de independência devia servir de guia para entendimentos entre as forças políticas quanto ao que deve ser feito para não se repetir o passado. É fundamental que não se continue a reproduzir as condições que resultaram na pobreza a desigualdade tornadas notórias nestas últimas semanas. Tempos difíceis estão aí à porta e é bom que não se permita que a desesperança se instale.
É verdade que o ambiente político não é o melhor para entendimentos entre os partidos. Para além da desconfiança mútua renovada nos últimos tempos, há ainda a perspectiva de conquista do poder seguida de forte bipolarizacão que o próximo ciclo eleitoral, a começar pelas autárquicas em Setembro/Outubro vai colocar. A crescente dependência da população contribuirá para fazer do papel do Estado na economia e na sociedade um elemento-chave do posicionamento das forças políticas. Mais ajuda externa irá fazer da gestão dos recursos disponibilizados um elemento de contencioso forte entre os partidos com as habituais suspeições pelo meio. A conjugação de mais ajuda e mais pobreza poderá constituir um incentivo mais no sentido de se reproduzir modelos anteriores, com resultados já conhecidos, do que em lançar o país noutros caminhos de maior sustentabilidade dos ganhos conseguidos.
Ou seja, tudo vai concorrer para que mais uma vez um choque externo de grande envergadura não sirva de pretexto para se mudar o rumo do país. Seria porém de grande importância que não fosse assim. O regresso das tradicionais palmas nas reuniões plenárias do parlamento, depois do apelo ao unanimismo de conveniência que as calaram, deveria significar a assunção de um discurso aberto, franco e construtivo de todos os sujeitos parlamentares com vista a entendimentos de fundo para se enfrentar os grandes desafios actuais e futuros. O país agradeceria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.