Ouve-se por aí que a liberdade de expressão é uma das maiores conquistas da democracia. Creio, porém, que há alguma impropriedade de linguagem em tal asserção. Estaria de acordo se se dissesse que ela esteve refém e que foi recuperada, uma vez que ela é, ou devia ser, um direito natural. As constituições modernas sentiram-se obrigadas a serem redundantes, garantindo um direito natural a modos de proibir qualquer prossecução em função do seu exercício.
Acontece que, nos dias de hoje, voltou o debate à volta da liberdade de expressão, transformando-a de liberdade irrestrita a liberdade condicionada. O que estará por detrás desta motivação, nada subtil, de relativização da liberdade de expressão?
Se nos lembrarmos que as derivas autocráticas localizadas, quase sempre começaram com limitações à liberdade de expressão (LEI DO BOATO, etc.) e de reunião (SÃO PROIBIDOS AJUNTAMENTOS DE MAIS DE UMA PESSOA). Proibição de repetir informações não confirmadas ou autorização tácita de reunião apenas com a nossa imagem refletida no espelho constituem lembranças de um tempo que não está tão distante como se pode crer, quando se poderia combater o boato com a livre circulação de notícias e informações ou tornando inofensivas as reuniões caso os poderes baseassem sua atuação no estrito respeito pela lei, usos, costumes e dignidade humana.
Diante das alternativas disponíveis, salta à vista que os limites impostos então à liberdade de expressão e de reunião funcionaram como balão de ensaio para agressões mais brutais às liberdades individuais.
Perante uma tal crença, que esperar das movimentações de hoje no sentido de, se não coartar, limitar a liberdade de expressão? O que aí vem?
Ninguém me convence que limitar a liberdade de expressão é o método adequado para combater as “fake news”. Assim como a lei do boato não se mostrou ser a melhor via para travar o “diz-que-diz”, o bochicho, na sociedade.
Se alguém difama, calunia ou injuria pessoas ou instituições, lá está o Código Penal, o livro que tudo cobre. Rigores da Lei sobre ele ou ela.
Se alguém incita uma pessoa ou um grupo para práticas ilícitas, em se provando o dolo da atuação, lá está, de novo e sempre, o livro dos livros, tipificando o ilícito e definindo a penalidade aplicável.
Se alguém se lembrar de lançar campanhas contra a vacinação que, segundo a Ciência, pode contribuir para a derrocada de uma pandemia, desde que não use a força (política, religiosa, pecuniária) para realizar seus inconfessados intentos, a solução do problema não pode passar pela generalizada limitação da liberdade de expressão.
Se alguém se lembrar de engendrar uma campanha contra as urnas eletrónicas não pode ser chamado à pedra porque é um direito que lhe assiste – dizer claro e em alta voz que não concorda, sem ser perseguido. Aliás, porque é que declarar-se favorável ao uso de urnas eletrónicas é permitido e ser-se contra já não o é?
Porque é que um lunático (permitam-me insultá-lo, mas sem lhe limitar os direitos) que não toma vacinas e acha que as vacinas são perniciosas, não pode conclamar seus vizinhos a não se deixarem vacinar? Ele diz o que quer, baseado no que acredita, e o outro, que o conhece de ginjeira como um anti-ciência de pedra, não se vacina e vai para à unidade de tratamento intensivo, vulgo UTI, do hospital. Haverá bases para o acusar, julgar e condenar? Se não usou a força, não recorreu a cárcere privado, não exerceu qualquer chantagem, porque haveria o vizinho de segui-lo?
Há aqui um confronto entre a liberdade de expressão do indivíduo que lança a campanha, o boato, o bochicho, e a credulidade acrítica do seguidor, privado de fontes seguras de informação e educado para seguir os sebastianistas de serviço. Quem deve ser perseguido? O fulano que, no uso, da sua liberdade de expressão, diz o que quer a quantos o escutam? O cidadão acrítico, de uma credulidade confrangedora, mal informado e educado para ser uma maria-vai-com-as-outras?
Em meu entender, nenhum deles. O espertalhão não, porque usando o direito de dizer o que lhe vai na alma e fazer circular seu ponto de vista não pode ser perseguido; o coitado que se deixou levar pelo delírio do espertalhão também não, até porque nem se sabe se vai sair com vida da UTI.
A culpa morre então solteira? Não, senhora.
Haverá um culpado. Alguém, instituição ou poder que tinha a obrigação de difundir informes mais consistentes do que os do espertalhão; uma comunicação melhor articulada do que a do chico-esperto da nossa estória; uma presença mais firme e mais forte do que a do nosso aventureiro; o sistema educacional que não foi a fundo na formação de cidadãos, uns entes cientes de seus deveres e ciosos de seus direitos; os poderes constituídos que não conseguiram ser tão convincentes quanto o pedreiro-livre, deixando-se ultrapassar por quem detém, notoriamente, menores recursos.
Em tese, responsabilizaria quem deixou seus cidadãos impreparados para separar o trigo do joio, sendo vítimas fáceis de aventureiros sem escrúpulos ou, simplesmente, de mentes exibicionistas, que vivenciam um prazer orgástico quando conseguem que o próximo os siga acriticamente; responsabilizaria quem não usa todos os recursos ao seu dispor para manter bem informados os seus cidadãos; responsabilizaria, ainda, quem, em vez de agir proactivamente, se arrasta reagindo, tarde e a más horas, a agressões previsíveis, acabando sendo arrastado na enxurrada.
No momento, nos tempos que seguimos vegetando, não apontaria o dedo acusador a ninguém, mas deixaria claro que:
1. Impor limites à liberdade de imprensa como forma de colmatar lacunas de sua atuação imprevidente não é aceitável, mormente quando, na história, sempre que se avança com tais reservas, elas mais não são do que pontas de lança de algo que aí vinha e que não prestou;
2. Criminalizar a ação de indivíduos ou grupos que só conseguem causar danos porque os provedores públicos do sistema educacional deixaram brechas na formação das pessoas que eram supostas deixar o sistema como cidadãos plenos e agentes de mudanças, seria um abuso inaceitável;
3. O certo, o direito e o seguro é investir forte na formação de cidadãos e não meramente indivíduos industriados nas letras, nas ciências e bem pouco na arte;
4. Diante da realidade que se vive – e enquanto se aguarda a emergência do homem novo, cidadão produto de um sistema vocacionado para essa finalidade – a atuação, em modo bombeiro, para minimizar as falhas do sistema que deixaram os cidadãos à mercê de aventureiros e espertalhões.
Recalibrar o sistema educacional dará frutos a médio/longo prazo. Mas é essa a abordagem que travará derivas totalitárias que começam com “pequenas” proibições, limitações de direitos fundamentais, com o beneplácito do estado de exceção que se vive.
Por hoje, vão ser precisos investimentos (não estou falando de dinheiros, mas de disponibilidade e inteligência) firmes, fortes e coerentes na educação das massas; na difusão de informações (ilustradas, sendo necessários); numa estratégia de estar “junto das pessoas”, a modos de melhor compreendê-las e melhor elucidá-las, e de apreender a linguagem mais eficaz a utilizar na codificação das mensagens.
Diante de incómodos e danos causados por formadores de opinião picaretas, que o Estado, a Sociedade e a Administração Pública lancem mão dos recursos à sua disposição para ajudarem as nossas gentes a ter opinião própria. Não aquela opinião impingida por opinionmakers picaretas, nem aquela destilada pelos poderes. Mas opinião que é resultante da passagem desta e daquela por crivos críticos e formatada de acordo com dados da observação empírica do cidadão.
Limites à liberdade de expressão e de reunião? Nunca. O que vem aí não vai prestar. E isso porque, não raras vezes, foi por aí (limitações “inocentes”, em função de quadros sociopolíticos complicados) que começaram as restrições das liberdades, que se acabou o que era doce.
Será o princípio do fim? Só se deixarmos. E não vamos deixar, certo?
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022.