Agora parece que finalmente já estão no ponto de serem adoptadas como arma de arremesso político. Como é habitual na política cabo-verdiana quando questões de fundo e de importância são colocadas elas não são realmente discutidas com a seriedade que o respeito pelos factos, a busca da verdade e o foco no interesse geral exigiria. Na maioria dos casos passam simplesmente a integrar o arsenal que se utiliza nos infindáveis confrontos políticos. Exemplo disso é a questão da TACV e dos transportes aéreos que na sessão da Assembleia Nacional desta semana vai ser objecto de mais um inquérito parlamentar dos muitos que quando chega ao fim é como se não fosse e imediatamente se volta ao ponto de partida.
Falar da Fome em Cabo Verde sempre foi um tabu. Como ameaça existencial traduzida nos milhares de mortes que se seguiam às estiagens permaneceu bem viva na memória colectiva da nação. O tabu é não permitir que se confunda com qualquer situação de carestia e dificuldades da vida que conjunturalmente possam existir. Como hoje se reconhece em todo o mundo as fomes na história são feitas pelo homem. Ou seja, em geral não resultam de secas, mas sim de falhas de mercado ou da incapacidade ou falta de vontade dos governos em resolver a situação. Um exemplo disso é que aconteceu em Cabo Verde depois da fome de 1947. A atitude das autoridades mudou no sentido de garantir segurança alimentar e como resultado nunca mais houve fomes apesar das secas que se sucederam até agora.
Insuficiências alimentares em maior ou menor grau existiram e ainda existem em vários segmentos da população que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. Agravam-se com as secas particularmente nas zonas rurais e devem merecer uma resposta compreensiva do governo no que respeita à garantia de rendimentos mínimos, acesso a alimentos e cuidados especiais dirigidos à população mais vulnerável. Num país com défice de produção alimentar e constrangimentos vários devido à insularidade e à pequenez da população, a intervenção do Estado é fundamental para fazer face às imperfeições e falhas de mercado não se excluindo à partida a subsidiação de bens básicos e de certos factores de produção, particularmente quando em presença de choques externos. De facto, nem sempre o mercado é resposta aos problemas e, além de se garantir acesso a alimentos a todos com tais medidas, há que acautelar outras consequências que sendo transversais podem fazer o país entrar numa espiral de alta de preços e salários, incomportáveis a prazo e prejudiciais para a competitividade do país.
A tentação de fazer aproveitamento político da memória das fomes em Cabo Verde é sempre presente. Antes a denúncia de fomes passadas serviu para o PAIGC se reivindicar como único representante das ilhas. Após a independência procurou-se legitimar o regime imposto, atribuindo-lhe o mérito de ter erradicado a fome quando, de facto, se deu a continuidade a medidas para garantir segurança alimentar com o apoio da ajuda internacional. Que tais argumentos já não tinham o peso de outrora viu-se quando nos anos noventa o então presidente da câmara de S. Vicente denunciou fome na ilha e foi tomada como mais uma excentricidade do político do que uma realidade que a ilha estaria a enfrentar. As pessoas sabem o que realmente significa declarar que há fome nas ilhas e a desesperança que tal perspectiva acarreta.
Não é à toa que só ultimamente é que se ousou trazer a questão para o espaço político. Percebe-se a tentação de aproveitar para ganhos políticos a fragilidade criada pela pandemia do coronavírus, ela própria uma ameaça existencial, que provocou uma contracção brusca da economia em cerca de 15% e expôs a precariedade e a vulnerabilidade da população. Ainda por cima nas condições actuais de incertezas de vária ordem e de constrangimentos diversos e de tensões geopolíticas graves em que as pessoas tendem a ficar mais ansiosas e frustradas na expectativa de uma retoma que por ora parece mais distante e menos linear. A verdade é que com isso não se vai conseguir pôr em causa a legitimidade de quem governa, mas vai-se adiar outra vez o debate crucial para o país. E devia ser de interesse de todos saber o porquê da persistência das vulnerabilidades na população, apesar dos milhões de dólares gastos em programas de luta contra a pobreza, e o que impede que se faça as reformas e os investimentos necessários para o país crescer mais e debelar o desemprego.
Varrer problemas para debaixo do tapete e concentrar-se no arremesso político parece ser o desporto nacional favorito. É o que se assistiu mais uma vez nesta semana da Língua Materna. Não há proposta de avanço que se faça para ampliar o conhecimento do crioulo que não é posto no contexto de uma luta identitária contra os que supostamente albergam algum “preconceito linguístico”. A eventual introdução do estudo da língua no 10º ano é por alguns visto logo como oportunidade “para ter um conjunto de alunos do 10º ano que são defensores acérrimos do crioulo e que irão defender o crioulo com unhas e dentes”. Ou seja, quer-se fazer de alunos previamente doutrinados combatentes de uma causa que provavelmente nem é de se ter nas escolas uma disciplina da língua materna, mas de fazer do crioulo a língua de ensino.
Está a ficar cada vez mais evidente que com a insistência na oficialização do crioulo o que realmente se pretende é sua introdução como língua de ensino. Diz-se que a maioria das competências técnicas do país em matéria linguística converge nesse objectivo e só se está à espera que os políticos o aceitem e ajam nesse sentido. De fora parece ficar o sentimento dos pais que todos os anos têm que se preocupar com a qualidade do ensino que os filhos vão receber nas escolas e também a expectativa da sociedade quanto ao retorno que o país vai ter do enorme investimento feito no sector crucial para competitividade e produtividade do país.
A urgência que se quer pôr nesta mudança sem cuidado aparente com o que se iria exigir em termos de preparação dos professores e manuais e outros recursos didácticos para ter resultados e qualidade no ensino ministrado mostra o quanto questões de qualidade e eficácia são sacrificadas em lutas identitárias que depois de uma forma ou outra têm tradução política. Também esbarra com a realidade inultrapassável de se ter o português como língua oficial. Ao roubar às crianças e jovens cabo-verdianas o único espaço, a escola, onde podem ter uma imersão completa na língua portuguesa, porque os professores falam crioulo e várias disciplinas são ministradas também em crioulo, limita-se efectivamente a possibilidade de ganharem o nível desejável de proficiência no uso do português. Certamente que os pais e de entre eles muitos dos “experts” vão querer arranjar alternativas em escolas privadas para os seus filhos como de há muito vem acontecendo. Prejudicados na carreira e na participação cidadã, ficam os que não têm nem meios nem contactos para isso.
Entretanto o país vai caminhando crispado com os confrontos políticos estéreis e sem ser demovido desse caminho já claramente desastroso nem por secas, pandemias ou quaisquer outras ameaças existenciais. Evocar o espectro da fome nestas circunstâncias é mais um fait divers que não altera praticamente nada. Quebra-se o tabu, mas não se ganha em clarividência e vontade para fazer das fomes, insuficiência alimentar e pobreza uma memória longínqua.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.