Cabo Verde, um caso particular nessa categoria devido a uma série de circunstâncias, ainda poderia estar em desvantagem muitos pontos abaixo não fosse a têmpora forjada na própria história, razão da sua capacidade de sofrer e não desistir, resistir e não perecer. Já por isso, rejeita incluir-se na dita pauta. Óbvio. Na verdade, quando em retrospetiva se atenta às condições extremas do regime colonial, as ilhas passando pelas mais duras provações nas cirandas da morte uma crueldade não socorrida que Loff Vasconcelos não hesitou qualificar de extermínio, há que convir, um povo que a tanto resiste e fôlego ainda resta-lhe para concorrer e ganhar a corrida que o leva a associar-se ao clube das nações independentes, pouco há que duvidar, capacidade tem para enfrentar os mais renhidos combates, escalar o evereste das suas montanhas, o temor só podendo vir do adormecimento em tempo de construir o futuro.
Haverá consequência desse temor traindo o manejo do valioso bem possuído por este povo de sobreviventes o drama da própria história a confundir-se, ironicamente, com uma das mais prestimosas peças identitárias? Os factos posteriores ao pontapé dado no velho sistema parece concorrer com uma resposta a meio termo, de certo modo, concordante com Amílcar Cabral, ‘a independência não é apenas a conquista de um hino e uma bandeira’ e Baltazar Lopes da Silva, ‘ela é momento para não se demorar a bater palmas, mas sim de muito e muito trabalho’. Advertências sábias de quem se acautela com o deslumbre que poderia vir da entrada num regime que se coloca nas antípodas do que tomba fazendo antever: pão a se multiplicar para chegar a todas as bocas; população a crescer em vez de se dizimar; necessidade básica subindo degraus; fenómeno reivindicativo surgindo e correndo mais rápido que soluções; gestão a se empurrar cada vez mais para o equilíbrio de fio negando progresso e confirmando, deslumbre em alta, têmpera à míngua, sonho a adiar-se. Será então possível reacender a chama? Uma quase certeza, porém, o esforço, espera-se, poderá ser bem maior que o sopro que a apaga.
Antes, porém, conviria ter em atenção José V. Lopes e a sua obra `Um Corpo que se Recusa a Morrer´ que considera marco simbólico de um antes e depois o Desastre da Assistência na Praia – 1949, mais de duzentas vítimas mortais. Pertinente, porque a partir daquela data não mais a seca e a fome se conjugariam na cumplicidade da omissão e silencio para o pão não chegar às bocas, nem tão-pouco ocorreria massivas quantidades de corpos para na entranha da terra se sumirem prematuramente. Oportuno, porque desafia o país num momento em que a aquelas velhas desgraças vêm somar outras já globais que alertam para a necessidade de aprimorar os instrumentos para assegurar os ganhos. Uma exigência do pós-marco quando a construção do futuro já em adversa conjuntura planetária torna fundamental o primado do país em todas as circunstâncias e não perca a corrente geracional a perspectiva da história, a amarga experiência da opressão de séculos, o estado de alma conforme dito – povo que rejeita ir para a pauta dos desafortunados.
Já a influência da história na arquitetura do futuro requere observar dois factos: um, o quase meio século de soberania que não desmerece as advertências anteriores não obstante vezes de bênção ausente; outro, o longo caminho ainda por percorrer, grau de dificuldade em crescendo, dotes de resistência em declínio, segurança identitária em risco. Na verdade, nem as escolas injetam na corrente geracional as informações históricas para perpetuar a chama da alma e não falte luz para a construção; nem tão-pouco concorre o colorido da bandeira para não se deslocar o foco donde nunca deveria sair – o drama que cobria de breu o sagrado chão destas ilhas. Falhas graves? Sim o não, certo é que poderão levar a campo de insidiosa interpretação: passado sofrido a envergonhar o presente, presente remediado a esconder o passado que nada abona a credibilidade da nação quando a barganha de recurso é venal para todo o esforço exigido.
De todo o modo, reconheça-se, longo é já o caminho percorrido no campo educativo, ainda que merecendo mais um reparo pela ausência de um fator dinâmico: a captação contínua de talentos para irem soltar suas estrelas nos mais avançados centros de saber e fazer e regressem aptos para lidar com os problemas mais complexos do processo do desenvolvimento. Ou não seria a melhor forma de superar o existente défice de ideias, seja na criação de projetos atrativos para o grande capital, seja no aperfeiçoamento das engrenagens governativas? Talvez fosse a melhor forma de entrar no próximo meio século já de passo acertado e possuído dos melhores instrumentos de intervenção, seja: matriz estratégica para alimentar de conteúdos programáticos os vários ciclos de governação e evitar derivas onerosas e falhas de racionalidade; quadro institucional estruturado para produzirem o mesmo efeito. Outra questão já seria passar das palavras aos atos.
Não é fácil, pois mesmo que as primeiras cinco décadas de soberania tenham proporcionado grandes avanços e travado o curso dos acontecimentos causadores de estragos humanos, continua o país psicologicamente capturado por velhos fantasmas, atolado nas antigas rotinas que não concorrem para o despertar para a nova realidade, outro contexto que se oferece ao pais para o tornar económico e socialmente sustentável já respaldado pelos progressos na dessalinização da água do mar e energias renováveis. Já seria fundamental esse despertar para evitar que a dita transposição vá contaminar o próximo meio século. Assim, independentemente dos crivos que a respeito estejam já a ser concebidos, é um facto: nunca como hoje esteve o país tão possuído de ingredientes estratégicos para se projetar para grandes alturas: mar vasto, sol abundante, vento também, recurso humano só esperando a habilidade do toque para ser, de facto, a grande alavanca para colocar o país em alto patamar.
Porém, é difícil imaginar o que poderia acontecer se as rotinas menos apropriadas se transferissem para o próximo meio século sob a pesada ameaça dos fenómenos globais. E, talvez por isso, fosse necessário uma transição que evitasse o adormecimento em tempo de prevenir fenómenos como seca severa, inundação, segurança alimentar, florestal, dos lençóis freáticos, tantos outros que possam esconder a surpresa do retrocesso, factos que obrigam agir rápido com soluções apropriadas.
S. Vicente, que cedo expressou determinação de ‘levantar a ilha’, um exemplo, não consta que esteja agindo com suficiente rapidez para ganhar vantagem competitiva e no mínimo revelar a tendência para alcançar o peso relativo que noutras épocas já possuiu. Acelerar o processo talvez exija reconhecer, por um lado, não é fardo para curtas alavancas, por outro, não é para cifras catadas tostão a tostão artimanha ‘caldo de pedra’ mas, sim, para o grande capital. Ora, grande capital envolvido significa lucro à proporção, projeto potenciado o suficiente para corresponder à alta expetativa de retorno que, ao que parece, não está sendo proporcionado. Estará a faltar variável na equação, ou é outro Lázaro que ao chamado já não reage? Venha luz e esclareça.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.