Mais responsabilidade constitucional

PorHumberto Cardoso, Director,9 mai 2022 8:18

​No debate parlamentar com o Primeiro-ministro sobre Segurança que teve lugar na semana passada aconteceu um acto inédito. O PM fez um requerimento à Mesa da Assembleia Nacional para obrigar os deputados do Paicv a entregar provas das denúncias de escutas telefónicas ilegais e uso indevido de videovigilância.

O próprio PM confessou que não sabe se o governo pode solicitar um requerimento ao parlamento. De facto, o artigo 114º não inclui fazer requerimentos no uso da palavra pelos membros do governo enquanto para os deputados está claramente estabelecido na alínea g) do artigo 111º. Por outro lado, consideram-se requerimentos só os pedidos respeitantes ao processo de apresentação, discussão e votação ou ao funcionamento da reunião (artigo 121º). Não parece que tenham cabimento na dinâmica de um debate em sede de fiscalização política do governo em que “a uma acusação política se responde com uma refutação política”. Mesmo assim foi-se avante com o requerimento, mas ninguém espera que tenha quaisquer efeitos práticos.

Exigir entrega de provas das denúncias só contribuiu para cortar a meio o debate e para o transformar em mais um exercício de arremesso político prejudicando ainda mais a imagem já desgastada do parlamento. É seguir pelo caminho da judicialização da política que de facto atenta contra a liberdade de expressão dos deputados como bem referem vários constitucionalistas e põe em perigo a eficácia do parlamento como órgão de soberania que fiscaliza a acção governativa. Ainda bem que existem as imunidades incluindo a irresponsabilidade civil, criminal e disciplinar do deputado em relação a tudo o que é dito na plenária da assembleia nacional para que os pesos e contrapesos funcionem na democracia e haja accountability, ou seja, a responsabilização e a prestação de contas por todos os actos praticados por quem tem o mandato, os recursos e os meios para governar. Tentar coartar isso é que pode configurar um ataque às instituições democráticas em particular àquela onde os cidadãos estão representados no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.

De facto, dar vazão a queixas ou denúncias de cidadãos de eventual uso ilícito e ilegal de escutas telefónicas ou outros meios de vigilância electrónica no quadro de um debate parlamentar com o PM não devia ser visto como ataque a serviços ou departamentos do Estado como a polícia e serviços de informação que estão sob a direcção ou superintendência do governo da república. Em causa estão direitos fundamentais dos cidadãos para cuja defesa todos os órgãos de soberania numa democracia liberal e constitucional têm especial obrigação de activamente contribuir. E a verdade é que possibilidades de abuso desses meios na investigação criminal e no âmbito da recolha de informações por razões de segurança existem sempre mesmo nas democracias mais maduras e com sistemas de controlo judicial e outros dos mais estritos.

São conhecidos casos que de tempos em tempos vêm a público na América e na Europa de atropelos diversos e que depois levam a inquéritos, revisão dos procedimentos e aprimoramento dos mecanismos de controlo. Recentemente foi revelado o caso de escuta dos telemóveis de ministros em Espanha e um pouco antes de um caso similar de escuta de personalidades da Catalunha que já tinha sido alvo de denúncias da oposição e dos separatistas catalães. No caso de Cabo Verde, em que a democracia é menos madura e em que se está praticamente no início da criação de uma cultura institucional respeitadora dos direitos, é fundamental que da parte do governo haja uma preocupação e uma disposição por fazer os serviços sob sua responsabilidade, cumprir o legalmente estabelecido e estar atento a todas insuficiências, omissões e uso ilícito dos meios disponibilizados. Para além das auditorias que por iniciativa própria deve promover, queixas e denúncias dos cidadãos devem ser investigadas como forma também de avaliar o sistema, tendo sempre em conta que do Estado se espera em primeiro lugar que garanta a segurança, a liberdade e a privacidade de cada cidadão.

Tomar denúncias no parlamento como ataques a departamentos e serviços do estado em vez de aproveitar para esclarecer situações e procedimentos existentes e também de refutar acusações se as houver ou avançar com investigação quando se mostrar necessário retira o aspecto construtivo do que legitimamente se devia esperar do debate entre situação e oposição. Pelo contrário, tende-se a personalizar as críticas feitas e tomá-las como sendo dirigidas aos profissionais do sector, sejam eles polícias, professores, médicos e enfermeiros ou outras classes de funcionários públicos. Na sequência, o que se nota é que o debate degradar-se, passando as partes a competir para mostrar quem é o melhor a proteger essas classes de profissionais em salários, benefícios e meios disponibilizados como se tudo isso se tratasse de uma corrida eleitoral para assegurar votos. Evidentemente que num ambiente assim as razões para o debate perdem-se pelo caminho e as questões reais e urgentes de segurança, de qualidade do ensino, eficácia da justiça, e de resultados de políticas em vários outros sectores passam para o segundo plano.

Recorrentemente as mesmas matérias regressam para o debate e invariavelmente acontece o mesmo. Privilegia-se o apelo a sentimentos e a identidades artificiais, factos não são reconhecidos ou vistos em contexto e no fim o que prevalece é a “cor da camisola” deixando pouco espaço para compromissos e consensos. Infelizmente as alternâncias na governação e na oposição não se têm prestado para melhorar a situação com diminuição da crispação e o firmar de acordos tácitos que permitisse quebrar o círculo vicioso actual. Parece faltar o que alguns chamam de “responsabilidade constitucional” que leva a que se cumpram as regras do jogo democrático para que as virtualidades do pluralismo, da diversidade e do exercício do contraditório se conjugam para realizar o interesse colectivo. Mais forte tem sido a tentação pelo personalismo na política que depois acaba por se traduzir em falhas repetidas no funcionamento de órgãos de poder político ao nível central e local e em protagonismos desajustados de figuras públicas com responsabilidade.

O facto de nem as sucessivas crises, com o seu impacto dramático e até assustador criando muitas incertezas para o futuro, se mostrarem suficientes para mudar o estado de coisas na esfera pública, é realmente preocupante. Ainda não se consegue focar nos desafios que se colocam ao país mesmo quando a conjuntura é terrível e incerta. Também não há atitude de contenção como se pode ver pelos festivais com dinheiro público já anunciados, tornando difícil nutrir o espírito de solidariedade que os tempos actuais exigem. Paradoxalmente, como se nada tivesse acontecido – guerra, aumentos brutais de preços, endividamento rápido do país - parece reinar ainda o eleitoralismo mesmo sem eleições à vista, como se viu na última sessão do parlamento. Em consequência, não se deixa que mesmo os problemas mais candentes e urgentes de Cabo Verde sejam tratados com seriedade e sentido de responsabilidade. Todos, porém, devem reconhecer que a situação do país e do mundo não permite que isso continue. Urge uma mudança de rumo e de atitude.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1066 de 4 de Maio de 2022.

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,9 mai 2022 8:18

Editado porAndre Amaral  em  21 jan 2023 23:27

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