Liberdade de Imprensa em Cabo Verde: (o Relatório dos Reporteres Sem Fronteiras)

PorJosé António dos Reis,16 mai 2022 7:54

“A liberdade de imprensa é a possibilidade efetiva dos jornalistas, como indivíduos e como coletivos, selecionarem, produzirem e divulgarem informações de interesse geral, independentemente de interferências políticas, econômicas, jurídicas e sociais, e sem ameaça à sua segurança física e mental.” Repórteres Sem Fronteiras

A definição, acima citada, do que seja a liberdade de imprensa, tal como entendida pelos Repórteres Sem Fronteiras (RSF), deixa claro e sem equívocos, o que ela é e o que significa, mas também deixa transparecer cristalinamente o que não é propriamente a liberdade de imprensa.

Em Cabo Verde, segundo os RSF “A Constituição e as leis são muito favoráveis ao exercício do jornalismo, pelo que os profissionais podem exercer livremente”.

O problema na verdade não é o quadro legal existente no país, mas o exercício efetivo das condições favoráveis proporcionadas por um sistema jurídico-constitucional que dá garantias ao pleno exercício da atividade jornalística.

Fazer jornalismo é uma atividade de exposição e de risco porque na sua ação pode mexer com o poder, a vida e interesses das pessoas, podendo gerar relações de conflitualidade/promiscuidade ou relação de amor e ódio.

Optar por ser jornalista é uma escolha para exercer uma profissão que não é compaginável com posturas de medo, receio ou autolimitação. Quem optar por autolimitar-se no exercício da sua atividade, está a trair a sua profissão e a confiança com quem estabelece vínculo: que deve basear-se no compromisso com a verdade, com rigor e com imparcialidade. Aquele que não se sentir em condições de cumprir com essas exigências deve, consequentemente, mudar de profissão.

A liberdade de imprensa tem de ser uma conquista diária daqueles que se dedicam ao exercício da atividade jornalística, mas também de todos aqueles que intervêm direta ou indiretamente no processo, cientes de que nunca ela será uma dádiva de qualquer decreto ou poder, antes o resultado de uma luta constante pelas condições para o exercício do dever de informar e pelo direito de ser informado com verdade e independência.

Mas para se ter e se manter a liberdade de imprensa num país, tendo por base os critérios da RSF, não se pode resumir ou presumir que apenas caberá ao governo a responsabilidade para a promover e a defender: cabe também uma fatia de responsabilidade aos jornalistas, aos proprietários e gestores dos orgãos e às instituições e aos cidadãos no geral em contribuir para a sua afirmação e preservação.

Só compreendendo de forma plena as responsabilidades que impendem sobre cada agente ou ator no processo e dinâmica constitutiva da liberdade de imprensa se poderá melhorar o ecossistema relacional/comunicacional existente, com reflexo no desempenho em matéria de liberdade de imprensa, enquanto inter-relação entre diferentes variáveis e complexidades.

Estas considerações vêm a propósito da publicação do Relatório dos Repórteres Sem Fronteiras de 2022 e as reações diversas associadas à sua divulgação. Chamou-me atenção, sobretudo a “queda” de Cabo Verde no ranking mundial da liberdade de imprensa, baixando, aparentemente, da posição 27ª para 36ª.

Obviamente que uma “queda” desta magnitude suscita, em qualquer um, a curiosidade de se saber das razões que estiveram na base dessa descida tão significativa.

Em termos teóricos uma “queda” no ranking pode ser ocasionada por alguns eventos que podem impactar negativamente a classificação de um país, nomeadamente:

a) Os países, que estavam atrás, terem tido um melhor desempenho e terem ultrapassado os que se encontravam a frente;

b) De os países terem baixado na pontuação nas escalas de avaliação e os outros sem terem aumentado a sua pontuação, os terem ultrapassado por força da sua queda;

c) Descida no ranking originada por outras razões que não aquelas apontadas nas duas primeiras situações.

A tentativa, face às premissas supra, de encontrar uma explicação para esta “queda” de Cabo Verde no ranking, esbarrou-se com um problema inultrapassável: o índice deste ano foi baseado em uma nova metodologia o que, à partida, impossibilita qualquer comparação com os índices anteriores.

Tendo sido introduzida uma nova metodologia na elaboração do índice dos RSF, esse fato, como todos sabem, impossibilita ou inviabiliza o estabelecimento de uma base de comparabilidade dos dados. Isso significa, em termos concretos, que os dados deste ano, não sendo comparáveis com os dos anos anteriores, não permitem saber se Cabo Verde subiu ou desceu no ranking mundial da liberdade de imprensa dos RSF.

Assim sendo, por não haver possibilidades de se estabelecer relação entre dados recolhidos e processados com metodologia diferente, a única saída que existe, em termos de verificação da evolução de Cabo Verde no ranking mundial dos RSF, é a de esperar pelos dados do próximo ano, isto é, se for mantida a mesma metodologia, para se proceder à comparação e verificar se o país subiu ou desceu na classificação.

Aliás, o próprio relatório dos RSF que habitualmente traz uma seta verde e vermelha a indicar se um país subiu ou desceu no ranking, este ano, naturalmente, esse mecanismo foi eliminado, dando claramente a entender que os dados deste ano constituem dados de base, ou seja, é como se fosse o ano zero.

Deste modo, o que se pode fazer em termos de analise relativamente à posição de Cabo de Verde no ranking deste ano é o de verificar e avaliar os pontos fortes e fracos nos critérios/indicadores do desempenho de Cabo Verde, não podendo, por força de circunstância, fazer-se comparação com as prestações do país em anos anteriores.

Antes propriamente de me debruçar sobre o desempenho de Cabo Verde no ranking da liberdade de imprensa 2022, vou analisar a nova metodologia implementada pelos RSF.

E em que consiste essa nova metodologia?

Foram estabelecidos cinco critérios de avaliação sob a designação de “cinco indicadores contextuais” nos quais a pontuação de cada país depende.

Os indicadores utilizados pelos RSF para avaliar o grau da liberdade de imprensa apresentam-se com as designações que se seguem:

(1) Contexto político (indicador que procura-se avaliar “o grau de apoio e respeito à autonomia” dos orgãos de comunicação social, bem como o “nível de aceitação de uma diversidade de abordagens” jornalísticas;

(2) Arcabouço jurídico (indicador que tende a medir “o grau de liberdade de jornalistas e meios de comunicação para operar sem censura ou sanção legal”, bem como eventuais “restrições excessivas à liberdade de expressão” ou “as possibilidades de acesso à informação sem discriminação entre jornalistas e proteção da fonte” ou, ainda, “a presença ou ausência de impunidade para os autores de atos de violência contra os jornalistas”

(3) Contexto económico (indicador que avalia “as restrições económicas ligadas às políticas governamentais”, por exemplo excessiva burocratização na criação de veículo de comunicação ou favoritismo na atribuição de subsídios estatais, bem como restrições impostas por agentes proprietários de orgãos não estatais)

(4) Contexto sociocultural (indicador que mede o grau de restrições sociais traduzido “em difamação e ataques à imprensa com base em questões de gênero, classe, etnia ou religião” e as restrições culturais que incluem a “pressão sobre os jornalistas para não questionarem certos poderes ou cobrirem certos assuntos”)

(5) Segurança (indicador que procura medir danos corporais (homicídios deliberados, prisões, detenções, sequestros, etc.) sofrimento psicológico ou emocional (intimidação, coerção, assédio, vigilância, doxing, ódio, descrédito público) prejuízo profissional (perda de emprego ou apreensão de equipamentos).

Com base nesses indicadores contextuais, os RSF fazem a colheita de dados e, a partir deles, elaboram o seu relatório.

Os dados ou informações para o relatório são obtidos da seguinte forma:

1) Um levantamento quantitativo dos abusos cometidos contra os profissionais da comunicação social e contra os órgãos em si;

2) Uma análise qualitativa, medida através das respostas de especialistas locais em liberdade de imprensa a um questionário proposto pelos RSF.

Pois bem, é com base nessas informações que os relatórios dos RSF são produzidos e os países são classificados.

Passo agora a analisar a situação Cabo Verde e a sua classificação este ano. Cabo Verde obteve uma pontuação média 75.37, conferindo-o a posição 36ª no ranking mundial.

O quadro em baixo, permite ter uma ideia não só da pontuação global, mas também possibilita conhecer a votação por cada indicador e a posição no ranking por indicador.

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E quais foram as observações relevantes dos RSF nesses indicadores?Facilmente se pode constatar que a posição de Cabo Verde no ranking é prejudicada pela votação obtida nos indicadores social e legislativo, onde o país ficou colocado em 68ª e 44ª posições respetivamente, num total de 180 países.

O grande reparo negativo que é feito a Cabo Verde no indicador legislativo se prende, segundo o relatório, com “Um artigo do código de processo penal datado de 2005” que permite “incriminar qualquer pessoa, inclusive jornalistas, em caso de violação do sigilo processual”. Segundo o próprio relatório essa norma “nunca havia causado problemas, até janeiro de 2022, quando três jornalistas do setor privado e seus veículos de imprensa foram questionados”.

Essas são/serão as razões para uma pontuação tão baixa de Cabo Verde?

Ora se compararmos a posição de Cabo Verde no ranking nesse indicador (44) com a de Timor-Leste (11) veremos que há algo que escapa a uma compreensão lógica e substantiva.

Vejamos quais foram as considerações negativas em relação ao Timor-Leste sobre o mesmo indicador:

O relatório dos RSF quando se refere ao ranking do Timor-Leste no que concerne ao indicador legislativo diz, a dado passo, o seguinte: “Embora o Código Penal de 2009 tenha descriminalizado a difamação, o uso indevido do artigo 285, que abrange “denúncia caluniosa”, segue ameaçando jornalistas nos casos contenciosos envolvendo a media”.

E qual a diferença entre as duas situações? Nenhuma! E porque Cabo Verde e tão penalizado quando comparado com o Timor-Leste? Não se sabe e nem se compreende.

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No caso português, contrariamente ao que se possa pensar, apenas no processo ligado a Operação Marquês, foram constituídos arguidos e levados a julgamento 13 jornalistas e diretores de orgãos por violação de segredo de justiça, e todos eles foram defender-se na instância própria, sem alaridos, fazendo-se valer do que julgam ser o seu direito de informar.Mas vejamos o caso de Portugal que está cotado no ranking na 7ª posição. O relatório ao discorrer-se sobre o indicador legislativo, após considerações positivas em relação ao quadro legal existente, refere que “os meios de comunicação não estão imunes às pressões judiciais que entravam a liberdade de informação”. Mais a frente o relatório acrescenta que “Durante o ano de 2021, foi revelado que um promotor (procurador) ordenou a vigilância de vários jornalistas como parte de uma investigação sobre a violação do segredo judicial realizada três anos antes”.

Observando a situação descrita no relatório dos RSF nos países aqui citados, no indicador legislativo concretamente, fica difícil de perceber a razão porque Cabo Verde aparece na posição que é colocado, quando a sua situação está longe de ser pior que a daqueles países a que se fez referência.

No mesmo sentido vão as minhas observações em relação ao indicador social de Cabo Verde, onde o país consegue obter a sua pior classificação no ranking, posição 68, facto que penalizou fortemente Cabo Verde no ranking mundial deste ano.

E quais foram as considerações negativas dos RSF nesse indicador?

O relatório salienta algo positivo, especificamente que “as mulheres representam cerca de 70% da força de trabalho das redações em Cabo Verde”. E mais adiante o mesmo relatório destaca aquilo que, no seu entender, acha que é negativo, mais concretamente que “o pequeno tamanho das ilhas tende a impedir o desenvolvimento do jornalismo investigativo: muitos habitantes se conhecem e não é incomum que os jornalistas evitem cobrir um assunto que diz respeito a algum conhecido”.

Ora, uma particularidade que resulta das condições naturais do país, entra em considerações para avaliação não positiva, como se Cabo Verde fosse culpado por ser um país pequeno ou constituída por ilhas onde toda a gente se conhece.

E o jornalismo investigativo é isso ou se resume a isso? Fica difícil de entender!

Os RSF deveriam ter algum cuidado na validação das informações que lhe são fornecidas pelos especialistas locais em liberdade de imprensa, de modo a evitar a inserção no relatório de elementos imprecisos e, nalguns casos, inverídicos.

Por exemplo, não se percebe a razão ou motivação quando se reporta no relatório que “Os diretores dos meios de comunicação públicos, que dominam o cenário mediático, são nomeados diretamente pelo governo”, quando, na realidade, se sabe que os governos deixaram de ter intervenção, quer direta quer indiretamente, na nomeação dos diretores da radio e televisão, passando estes a serem escolhidos mediante concurso interno promovido pelo respetivo Conselho de Administração. Pode-se não gostar da solução adotada, mas é uma opção legítima entre várias.

Ora, imprecisão dessa natureza pode levar ao descrédito do próprio relatório o que é/seria de todo indesejável, já que se trata de instrumento importante de aferição e, porque não, de promoção a nível global, da liberdade de imprensa.

Espero que algumas dessas falhas, lacunas e imprecisões sejam colmatadas no futuro, para que se possa ter um melhor relatório que reflita fielmente a realidade de cada país.

Em conclusão gostaria de sintetizar que:

1) O relatório dos RSF é uma ferramenta relevante para situar o país a nível do ambiente global que rege a liberdade de imprensa;

2) O relatório reconhece que há liberdade de imprensa em Cabo Verde e alerta para alguns condicionalismos que prejudicam o seu exercício pleno;

3) O relatório deixa transparecer que a responsabilidade pela promoção e defesa da liberdade é do Estado, dos proprietários de orgãos públicos e privados, dos jornalistas e dos cidadãos, estes sobretudo quando atuam nas redes sociais, atacando ou violentando os jornalistas e os fazedores de opinião;

4) O conteúdo do relatório precisa ser aprimorado para evitar incongruências e inconsistências na avaliação de países quando se trata analisar os mesmos indicadores;

5) É preciso, na construção do relatório, prover-se de mecanismos de validação das informações recebidas dos especialistas locais de forma a evitar a inclusão no relatório de inverdades ou a omissão de fatos relevantes;

6) Continua a fazer-se referência no relatório à autocensura sem, no entanto, haver uma caraterização convenientemente precisa da sua manifestação. É preciso estudar-se o fenómeno para se saber se a autocensura dos mais velhos na profissão é igual a dos mais novos; se ela se reflete da mesma forma entre os que trabalham no setor público com os que estão no setor privado; se ela reflete o medo (justificado ou não), preguiça, incapacidade e incompetência, trabalhar ou fazer pouco, falta de vocação para o exercício da profissão ou simplesmente desleixo e desculpas para não se fazer o que é exigido ser feito.

O governo deveria promover/realizar um estudo sobre este fenómeno muito falado, a autocensura, e a partir dos resultados obtidos implementar medidas e estratégias, em articulação com outros atores, para a sua eventual superação;

7) O país precisa de um debate sério e sereno sobre matérias como o segredo de justiça nº 5 do artigo 22º da CRCV), a liberdade de expressão e de imprensa (artigos 48º e 60º da CRCV), o direito à personalidade (artigo 41º da CRCV),todos assuntos com dignidade constitucional, de modo a evitar mal-entendidos, interpretação interesseira e confusão desnecessária, num estado que se define no nº 1 do artigo 1º da CRCV como “uma República soberana, unitária e democrática, que garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”

Sublinho: o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1067 de 11 de Maio de 2022. 

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Autoria:José António dos Reis,16 mai 2022 7:54

Editado porAndre Amaral  em  16 mai 2022 9:10

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