Nessa “comunidade nascida do fundo da terra”, frequentou a instrução primária “numa larga e comprida sala do 1.º andar, onde três grandes filas de sólidas cadeiras se dispunham paralelamente sobre um soalho capaz de suportar, nos intervalos que antecediam a chegada do professor, as correrias desenfreadas e os saltos de acrobatas”. Cumprindo o destino de muitos meninos desse tempo, em 1934, partiu para Mindelo para estudar no Liceu. Com o diploma do ensino liceal regressa à sua ilha e, com 19 anos, “organiza um curso de explicações na Povoação, Vila da Ribeira Grande”. Três anos depois, parte para Lisboa onde frequenta o Curso do Magistério Primário, tendo-o concluído em 1946.
Terminada a formação académica retorna a Cabo Verde. Inicia a carreira docente no ensino primário em S. Filipe (1946-1947)e depois em Mindelo (1947-1950).2 Nos anos 50 foi professor do Liceu Gil Eanes, onde lecionou as disciplinas de Matemática, Português e Geografia.3 Em novembro de 1956 foi contratado como professor do quadro do ensino técnico (Escola Técnica Elementar promovida em 1958 a Escola Industrial e Comercial). Destacou-se como diretor da Escola de abril de 1961 a dezembro de 1974. Em Portugal, onde passou a residir, foi professor durante 19 anos no Colégio Manuel Bernardes em Lisboa.
“Escola Industrial e Comercial Guilherme Dias Chantre”4 (designação atribuída pelo Ministério da Educação, agosto de 2013).
Ethos profissional
Segundo Leão Lopes (2010), a Escola Técnica, sob a liderança de Guilherme Dias Chantre, “já praticava as teorias de Piaget e Lev Vygotstky, aplicando-as num modelo de ensino até então inédito em Cabo Verde, onde o processo de conhecimento e o desenvolvimento da inteligência do jovem eram mutuamente influenciados pelo meio, pela sua realidade sócio-cultural e por um projecto de sociedade onde se projectavam as suas expectativas de realização com pleno sentido de cidadania”.
Este substrato teórico é percetível em dois artigos escritos por Guilherme Chantre – na época professor do ensino secundário – no Boletim de Propaganda e Informação intitulados “A propósito do ensino primário em Cabo Verde” (1957), onde dissertou sobre questões pedagógicas que afetavam a missão dos professores e manifestou, de forma frontal e fundamentada, o seu descontentamento com o estado do ensino na colónia.
Ao denunciar os efeitos nefastos de um regulamento que determinou a classificação dos professores em função do número de alunos que chegavam ao fim do ano aprovados, o Professor Chantre antecipa, em décadas, a pedagogia de avaliação formativa e inclusiva:
“[O professor] deixou de ver no aluno uma criança cuja educação lhe foi confiada, mas exclusivamente uma unidade para a conquista da percentagem. (…) O professor sente que a escola deixa de cumprir a sua missão. Passa a ser uma fábrica de produtos falsificados. Não dá à criança o desenvolvimento intelectual que a aquisição do grau complementar implica. (…)
Abusando das faculdades de memória da criança, exigindo após longas horas de aula esforços suplementares de lições, no meio asfixiante da saraivada de palmatoadas, com a obsessão de levar a exame o número de alunos que lhe garanta o ordenado nas férias ou lhe evite sérias dificuldades futuras, ele não se demora o tempo suficiente para a criança aprender com clareza e firmeza as noções basilares, não cria o clima necessário para o desabrochar do raciocínio.”
Janeiro de 1957
Atento às fissuras no sistema escolar constatou “que por essas pobres ilhas abundam actualmente professores a quem faltam ciência e arte para exercer o magistério” e que lecionam em espaços totalmente adversos às mais elementares condições que a higiene e a pedagogia reclamam:
“Mal demos os primeiros passos [na escola de Chã de Pedras], as tábuas ruidosamente chiaram e os buracos sucederam-se, espalhando-se profusamente por todos os lados de forma a pôr em perigo os incautos. Foi com muita cautela que alcançamos uma das três janelas abertas sobre o vale. A sala de aula apareceu-nos como símbolo duma decadência vertical: carteiras desmanteladas arrumadas a um canto e cobertas de espessa camada de pó, outras sem tampo em uso, crianças sentadas sobre o estrado que havia conseguido resistir ao tempo, o quadro sem cor definida onde os meninos faziam malabarismos para escrever.(…)
São na verdade infelizes essas criancinhas que frequentam semelhantes salas de aula. Salas que representam verdadeiro convite à preguiça, à melancolia, ao desânimo, à fuga.”
Fevereiro de 1957
Sendo um homem culto, “um claridoso, pertencente a um movimento no sentido amplo, mas sem produção literária” (Leão Lopes, 2009), foi precursor do paradigma de escola cultural: “A escola não procurava apenas fazer dos alunos homens competentes do seu ofício, capazes de uma rápida integração no mundo do trabalho. Explorava no mesmo passo, os seus gostos literários e artísticos, de modo a alargar os seus conhecimentos e a formar o homem na sua globalidade” (G. Chantre, 1961).
Foto Joaquim Saial (2013)
Raros foram os professores que mereceram tanto reconhecimento como Guilherme Dias Chantre. Inúmeras mensagens e testemunhos – que o destacam como mestre, pedagogo e líder – estão contidas no livro Guilherme Dias Chantre – Um educador e líder carismático, organizado por César Augusto Monteiro em 2010. O Livro de Memórias, Afetos e Valores é mais do que uma biografia, é a consagração de um Professor que pensou para além da sua época. Recomendo a sua leitura.
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1 Fonte principal para a escrita do artigo foi o livro de César A. Monteiro intitulado Guilherme Dias Chantre: Um Educador e Líder Carismático. Praia: Ed. Antigos Alunos da Escola Técnica, 2010.
2 “Listas de antiguidade dos professores primários”. Boletins Oficiais: 17 de abril de 1948, 30 de abril de 1949, 3 de março de 1950 e 31 de dezembro de 1951.
3 Relatórios do Reitor do Liceu (1951-56). ANCV. Fundo RPSAC.
4 Fotografia captada em https://m.facebook.com/Escola-écnica-do-Mindelo
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1073 de 22 de Junho de 2022.