Agora, e para que também fique claro, afirmo ao mesmo passo, peremptoriamente, que ninguém pode contar comigo para, acriticamente, ampliar o coro daqueles que, através de um parafusado discurso (caso Amadeu) elegeram, como seu preciso alvo de ataque, os sistemas judicial e político do nosso país. Existem, como não podia deixar de ser, críticas sérias e pertinentemente passíveis de serem feitas, as preocupações são conhecidas e, mais, são os próprios operadores judiciários e actores políticos que as reconhecem e, amiúde, as fazem ouvir.
Contudo, muito por conta daquilo que considero um artificioso mediático caso judicial, o espaço público cabo-verdiano não tem sido uma esfera de discussões razoáveis, ainda que contravertidas. Antes, transformado numa arena, não tem sido capaz de reprimir o desdém de uns para com os outros e tende a transfigurar-se num redondel qualquer onde se cruxifica e se pede a cabeça de uns e outros.
As pessoas transformam-se em “inimigos situacionais” e, como bem diria Jason BRENNAN, um Professor da Universidade de Georgetown, o “compromisso e o respeito para com as instituições do nosso Estado de Direito tendem a fragilizar”, para não dizer que quase se perderam. Não aplaudo essa atitude! O Estado de direito que todos defendemos visa, sim, proteger os direitos e interesses dos cidadãos, mas também a realização do interesse público. Como? Neste caso concreto, e, tão simplesmente, através dos tribunais. Conhecemos o que se tem dito e escrito, e por quem, sobre as instituições de soberania de Cabo- Verde, máxime, os tribunais.
O Dr. A.O. que nunca parou de os acusar, recorrendo a expressões depreciativas, dobrou a aposta ao ponto de JOÃO SANTOS afirmar, por exemplo, que não acatava as decisões do tribunal, ao mesmo tempo que idealizava e materializava a fuga de um condenado. Sob capa da legalidade e a coberto de um alegado direito à resistência, afirmava estar a lutar pela liberdade do seu constituinte - tudo aparentemente muito louvável -, quando, na verdade, estávamos perante uma das mais insidiosas formas de ataque aos poderes instituídos.
A transfiguração da justiça cabo-verdiana pelo conhecido caso Amadeu/Teixeira é, quanto a mim, uma das mais grotescas tentativas de justificar um grave atentado contra o Estado de Direito. Recordemos, muito sinteticamente, que o deputado Amadeu Oliveira sempre tentou justificar a fuga de Arlindo Teixeira, por ele protagonizada, com a alegação de que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) teria desrespeitado o acórdão nº 8/2018, do Tribunal Constitucional (TC). Subliminarmente, afirmava que o TC teria já absolvido Arlindo Teixeira, por considerar que o mesmo agiu em legítima defesa. Nesse sentido o STJ já não podia impor- -lhe qualquer medida de coacção, muito menos condená-lo pelo crime de que ele é acusado.
Mas o argumento não deixa de ser enganoso, pois, efectivamente, como se pode ler das decisões do TC, Arlindo Teixeira interpôs em 3 de Maio de 2017 um recurso de amparo para esse Tribunal em que sustentava que o STJ teria incorrido em ilegalidade, por atraso na apreciação de uma reclamação por ele apresentada, sobre o reexame dos pressupostos da sua prisão preventiva. O TC, através do acórdão nº 8/2018, de 25 de Abril, concedeu provimento ao recurso, decidindo, em síntese, que, por haver indícios de que o arguido teria agido em legítima defesa, o STJ devia colocá-lo em liberdade.
Mas, nesse acórdão o TC decidiu também que ficaria ao critério do STJ aplicar-lhe outra medida de coacção, que não a prisão preventiva (por exemplo, interdição de saída, caução, obrigação de permanência na habitação, etc. etc.). Clara é a dedução de que, ao contrário do que pretendeu fazer crer o Dr. Amadeu Oliveira, o TC não decidiu no sentido de que Arlindo Teixeira é inocente, ou de que não podia ver a sua liberdade restringida, nem, muito menos, de que não podia ser condenado pelo STJ pelo crime de que é acusado. Dando prosseguimento ao processo, o STJ colocou Arlindo Teixeira em liberdade, como ordenado pelo TC, mas, atendendo ao risco de fuga, impôs- -lhe, como fora deixado ao seu critério, a interdição de saída, com a apreensão do seu passaporte.
O STJ viria a repetir o julgamento e voltou a condenar Arlindo Teixeira em 9 anos de prisão, por homicídio voluntário. Dessa condenação o arguido interpôs mais um recurso para o TC, sempre tentando impedir uma decisão definitiva do processo, ao mesmo passo que a sua fuga ia sendo preparada. Enquanto se aguardava a decisão desse último recurso pelo TC e, uma vez que se expirou o prazo da interdição de saída, o STJ decidiu, sempre atento ao perigo de fuga, impor a Arlindo Teixeira a medida de coacção obrigação de permanência na habitação, situação em que se encontrava quando concretizou a fuga.
Consabidamente, a fuga foi preparada, financiada e executada minuciosamente pelo deputado da nação AO que, em claro desvio ou abuso do seu mandato, optou por obstruir o exercício de funções de outro órgão de soberania, no caso os tribunais, incorrendo, como deixaram perceber os fortes indícios, num crime de atentado contra o Estado de Direito, previsto e punido pelo artigo 8º da Lei nº 85/VI/2005, com a pena de 2 a 8 anos de prisão. Não deixou de ser sobremaneira grave, recordemos, o facto do mesmo deputado se gabar de que dispunha de um grupo de ex-fuzileiros e uma sofisticada logística, incluindo embarcações aptas para transportar alguém para o exterior, subtraindo-o alçada da justiça cabo-verdiana.
Enfim, que ilações qualquer pessoa de bom senso desses factos deviam extrair? Não terá sido a Sua Excelência, o então Presidente da República, a referir-se publicamente ao facto de que existe uma crescente consciência de que o Estado de Direito tem de ser defendido, com a legítima autoridade do Estado e sem qualquer hesitação? Ou será que, contrariamente, se deve atender ao que uma vez afirmou o Doutor Germano Almeida, isto é, de não se pode levar a sério tudo o que diz o deputado AO. Ora, aí está, é verdade que, como dizem os alemães, “Der Teufel lieght im Detail”. Ou seja, “o diabo está nos pormenores”. Então, como é possível ver nas declarações do Dr.
AO, enquanto deputado, feitas a partir da Assembleia Nacional, como “declarações não sérias”, essas do tipo que o nosso Código Civil prevê, no seu artigo 245., mas que consagra carecente de qualquer efeito, aquela declaração que é feita na expectativa de que a falta de seriedade não seja desconhecida? É que, muito sinceramente, o parlamento não pode ser confundido com um palco de teatro qualquer, nem o deputado dele um artista.
Foi com base no patentemente descrito que, uma vez convidado para me pronunciar sobre o recente pedido de suspensão do mandato do deputado AO, expendi as considerações que fiz na rádio e na televisão. Não vejo como não reafirmar que os sucessivos recursos antes, como agora, interpostos pelo Dr. AO e sua defesa, constituem, sem sombra de dúvidas, um uso desvirtuador do processo, uma vez que promovem, simultaneamente, um ilegítimo entorpecimento do processo, coisa que, afinal, todos condenamos, e, por outro, uma mediatização adversa do nosso sistema judicial. Se assim é, entendo que a conduta constitui uma afronta à justiça, porque põe em causa a rule of law.
Comportar-me de forma diferente, entendo, seria estar a prestar um mau serviço à cidadania, que se quer activa, mas responsável, e, por outro, favorecer o que, conscientemente ou não, me parece ser uma tentativa de erodir o nosso estado de direito. Definitivamente, estranho que das minhas palavras se possa ter percebido que me coloco contra os recursos.
Nada mais falso! O que disse, estribado nos melhores ensinamentos, neste caso do labor jurisprudencial anglo-saxónico, é que o uso abusivo do recurso, mesmo quando legalmente sustentado, se destinado a impedir o curso em tempo razoável do processo, pode tornar- se injustificável, desnecessário e, como tal, inadmissível. Tão sério que o seu uso abusivo acaba por ser uma afronta, não só à justiça como à nossa própria consciência pública. Tudo o resto, se há crime (s) ou não, compete aos tribunais dizê-lo, porque, sabemo-lo, decisivamente, quem diz o que é direito, são os tribunais. Ainda assim, existem nesse contexto, duas questões que importam ser sublinhadas.
A primeira diz respeito ao facto de ao Dr. AO ter sido decretada a prisão preventiva. Bem, é ensinamento básico de que, normalmente, os tribunais só decretam a prisão preventiva quando os elementos de prova de que, por um lado, há crime, são muito fortes, e que, por outro, o mesmo terá sido cometido pela pessoa constituída arguido. Doutro modo não podia ser, e, afirmar que não há crime, parece-me estéril, já que, a ser verdade, o todo o processo seria, como afirmou o Professor Giuseppe Bettiol, um processo vazio. Ora, isso não me parece razoável, tanto assim que o arguido foi acusado e, posteriormente, pronunciado.
Outra questão sobre a qual muito se interroga é a de saber se o Dr. AO será punido ou não. Como recentemente ouvimos da boca do advogado, Dr. Rui Araújo, a defesa vai tentar, no julgamento marcado para o próximo dia 29, convencer o tribunal a absolver o AO.
Dizer isso é admitir, no mínimo, de que essa probabilidade existe. Estamos, assim, perante mais uma questão (pena, não pode ser aqui discutida) e que é a de saber distinguir a verdade ou certeza da probabilidade, i.é., da probabilidade quantitativa e da probabilidade lógica. Como acima afirmei, compete ao tribunal responder definitivamente se os crimes por que o AO vem acusado existem, e, sobretudo, se a ele pode ser imputada a responsabilidade pelo seu cometimento, já que ninguém é punido sem uma culpa concreta, com suporte axiológico-normativo. Mas, convenhamos, entre a inferência probatória sobre a existência de crime ou crimes e a sua responsabilização, diria que a probabilidade do tribunal punir o Dr. AO é mais lógica do que quantitativa.
JOÃO SANTOS
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1081 de 17 de Agosto de 2022.