De facto, é bom que toda a logística para o funcionamento tenha sido montada e pronta a operar e que os recursos humanos, em particular os professores, tenham sido alocados de acordo com as necessidades. Mas não se deve ficar por aí. Os tempos actuais não são de normalidade, aliás, são de crises múltiplas e sucessivas, e o futuro próximo está cheio de incertezas. Por isso, no regresso às aulas uma outra dedicação, urgência e ambição deverá ser transmitida ao sistema para que seja possível a produção de capital humano à altura dos desafios presentes e futuros do país.
A aposta dos cabo-verdianos na educação dos filhos é algo que vem de longe, de séculos atrás. Sempre que oportunidades se ofereceram, com a disponibilização de escolas públicas ainda no século dezanove, posteriormente via Seminário na ilha de S. Nicolau e mais tarde dos liceus ao longo do século vinte, as famílias de todos os extractos sociais tudo faziam para as aproveitar. O desejo de ver os filhos com possibilidade de uma vida diferente e até de uma carreira na administração pública resultava em boa parte da percepção da precariedade da existência derivada das secas cíclicas e de outras vulnerabilidades do arquipélago. Havia também reconhecimento da importância do conhecimento traduzido no forte e generalizado apreço da população pelos seus intelectuais e homens e mulheres da cultura.
Com a independência nacional, os sucessivos governos servindo-se da extraordinária ajuda do exterior que foi disponibilizada ao longo dos anos para financiamento de escolas, formação de professores e bolsas de estudos proporcionaram os meios para responder a esse desejo arraigado da população de pôr os filhos a estudar. Construíram-se escolas do ensino básico por todas as ilhas, depois liceus a partir dos anos noventa e na década seguinte seguiram-se as universidades. O resultado desse esforço é que hoje a população alfabetizada do país situa-se à volta dos 89%. Entretanto, a massificação do ensino que tornou isso possível não foi acompanhada da preocupação com a qualidade do ensino prestado.
Com esses desenvolvimentos quebrou-se de alguma forma a ligação anterior entre conseguir diploma e ter conhecimento. Caiu também o estatuto social dos professores e da elite cultural do país. A situação piorou ainda mais quando se constatou que a esperada mobilidade social derivada de maior escolaridade afinal materializava-se, mas por outras vias que não do mérito. Se se associar a isso tudo o facto de a economia não acompanhar com a criação de postos de trabalho suficientes para o número de jovens que terminavam a formação nos diferentes níveis das escolas do país, imagine-se a frustração dos indivíduos e das famílias e o círculo vicioso que se cria e se alimenta com a perda de vontade em continuar os estudos como revelam as altas taxas de abandono no ensino secundário. Acrescenta-se ainda o desperdício em termos de capital humano que ano após ano o país acumula com a incapacidade de conseguir retorno adequado dos enormes investimentos feitos no sector da educação.
Há muito que se devia ter feito um esforço concertado da sociedade e do Estado de inflectir a actual situação e de efectivamente procurar valorizar o capital humano do país. Se não se vê muito progresso nesse sentido é talvez porque alguma inércia institucional se instalou e múltiplos círculos viciosos não permitem que tentativas de reforma do sistema sejam bem-sucedidas. Também não ajuda a falta de engajamento com o conhecimento que pudesse traduzir na exigência, designadamente de maior qualidade de ensino e de infraestruturas como bibliotecas, casas de ciência e museus e também de uma televisão pública culturalmente mais rica. De facto, o apreço anterior pelo conhecimento e pelos seus expoentes máximos nacionais não foi potenciado e deixou-se instalar em substituição a mediocridade e a ideologia. Reviver a paixão pelo conhecimento e valorizar o mérito é fundamental para pôr o país no caminho certo. O exemplo vem de países, particularmente os mais pequenos e insulares, como Singapura, Estónia e Maurícias, que conseguiram dinâmicas sustentáveis no seu processo de desenvolvimento.
Paixões de outro tipo não faltam, mas provavelmente são deslocadas porque não se concentram no essencial. Um exemplo flagrante é a que alimenta a movimentação para a oficialização do crioulo. Parte-se do pressuposto errado que o crioulo está em perigo ou encontra-se num estado de inferioridade em relação ao português e desencadeia-se um combate sem tréguas para a supostamente salvá-lo. Faz-se tudo por ignorar que emergiu dentro do império português e que, se enquanto língua materna dos cabo-verdianos não foi constrangida ou foi confinada pela língua oficial portuguesa, como por exemplo aconteceu com as outras línguas no Brasil, não seria depois da independência que isso iria acontecer quando na relação com todas as instituições democráticas e os seus titulares é livre o seu uso. Com o mesmo descaso para com a verdade dos factos quer-se fazer acreditar que se trata de uma luta identitária central para o país quando é matéria assente que a consciência da nação há séculos que se consolidou no arquipélago.
Mas a verdade é que paixões assim soltas conseguem resultados. Ideologicamente motivadas pressionam o Estado para se submeter aos seus ditames. No processo não se devia deixar de contabilizar os estragos na aprendizagem da língua oficial que afecta milhares de jovens e crianças e as deficiências que deixam em muitos outros que distraídos por todo esse combate fictício não conseguem obter as necessárias competências para uma cidadania plena e para uma actuação vantajosa no mundo actual interconectado e globalizado. Para o crioulo também há estrago porque acumula prejuízos à medida que se acentua a sua oralidade mesmo que apareça suportada por uma escrita de variantes à descrição do falante em particular e se afasta cada vez de uma escrita estandardizada com capacidade de expressão da toda a produção literária e institucional do país. E enquanto se está assim engajado à cata de objectivos ideológicos e de moinhos de vento não há paixão pela verdade e pelo conhecimento que se desenvolva.
Ora, sem isso não há como travar a grande luta pelo desenvolvimento do capital humano essencial para o crescimento do país particularmente neste período de crises que tudo leva a crer que vários anos vão passar até que surja alguma aparência da normalidade. Várias personalidades e figuras do Estado, entre os quais o presidente da França Emmanuel Macron já anunciaram o fim de uma era. À abundância que caracterizou os tempos recentes, deve suceder um tempo mais frugal, mais caro e mais exigente. É evidente que para se sobreviver e prosperar num mundo desses a qualidade do capital humano essencial para criar, inovar e aumentar a produtividade é crucial. Neste início de ano lectivo é momento certo para deixar de lado paixões ideologicamente motivadas e reacender o gosto pelo conhecimento, pela descoberta e experimentação. Também é tempo para renovar a vontade de aquisição de competência científicas e linguísticas necessárias para o sucesso ao nível individual e indispensáveis para o país prosperar.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1084 de 7 de Setembro de 2022.