Em seu soberbo entendimento, que se veio a descobrir que afinal não era bem seu, só a um Juiz se podia admitir tal prerrogativa.
Como é sabido, essa tese estapafúrdia, fruto de sobranceria compulsiva e do mais gritante desconhecimento do Direito Cabo-verdiano, acabou por ser desmontada, peça por peça, com o seu principal mentor, que tinha vindo de Portugal demitóde para doutrinar os indígenas, a enfiar a viola no saco e a procurar desesperadamente o caminho de regresso.
Infelizmente, tiradas do género, mesmo depois de desconstruídas, deixam sempre sequelas nos incautos, com alguns ainda a pensarem que a AN teria efectivamente violado a Constituição, por ter autorizado que o Deputado Amadeu Oliveira respondesse pelos seus actos perante o Poder Judicial.
Tentaremos demonstrar que a postura da AN nessa matéria se afigura isenta de reparos.
Rememoremos a origem e a evolução dessa controvérsia.
Depois da espectacular fuga para o estrangeiro de um arguido, cidadão de nacionalidade francesa e residente em França, já condenado por crime de homicídio em Cabo Verde, fuga confessadamente “planeada, financiada e executada” por um Deputado da Nação, a Comissão Permanente da AN concedeu, a pedido do PGR, autorização para que esse parlamentar fosse detido, fora de flagrante delito, e presente à Justiça.
Outra coisa não seria de esperar, pois em todos os Estados de Direito, que se respeitam, é assim.
Efectivamente, a deliberação desse órgão foi aprovada por unanimidade das forças políticas com assento no Parlamento: MpD, o partido maioritário, representado pelo Deputado Alcides de Pina; PAICV, representado pelo seu Presidente, Deputado Rui Semedo; e a UCID, representada pelo Deputado Amadeu Oliveira, em pessoa.
Entretanto, alguns dos referidos Deputados e partidos não só acabariam por fazer marcha atrás, como passariam, sob inspiração de putativos juristas, a procurar no Presidente da AN o bode expiatório por uma deliberação que, jurídica e politicamente, só a eles pode ser imputada.
Dos argumentos esgrimidos à essa intenção três sobressaem: 1º competia ao Plenário da Assembleia e não à respectiva Comissão Permanente, conceder essa autorização; 2º a autorização foi para a detenção e audição, não para se impor a prisão preventiva; 3º fora de flagrante delito, um Deputado só pode ser detido depois de ele estar definitivamente pronunciado.
Com o devido respeito, nenhum deles se afigura procedente.
Quanto ao 1º, isto é, saber se a Comissão Permanente dispunha de competência para conceder essa autorização para a detenção do referido Deputado, a resposta resulta, sem margem para equívocos, do artigo 148º, nº 5, alínea a), da Constituição da República, que dispõe que compete à Comissão Permanente “exercer os poderes da AN em relação ao mandato dos Deputados”.
De acordo com Doutrina autorizada, nomeadamente os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, “os poderes da AN” referidos nessa formulação são precisamente os de que depende o levantamento das imunidades, no caso de Cabo Verde os previstos no artigo 170º da Constituição.
Ou seja, é a mesma AN que está a exercer tais poderes, mas fá-lo, como é consentido pela Constituição, através da sua Comissão Permanente.
É uma competência, vale sublinhar este importante detalhe, que foi conferida à Comissão Permanente da AN com a revisão constitucional de 1999.
Uma competência atribuída de uma forma que não consente qualquer privação por parte do legislador ordinário.
Logo, cremos que estará a laborar em erro quem pretende sobrepor o Estatuto dos Deputados à Constituição, privando a Comissão Permanente de uma tal competência.
Neste como noutros casos, como resulta da hierarquia das leis, é esse Estatuto dos Deputados, lei ordinária, que deve passar a se ajustar à Constituição, Lei Fundamental, e não o contrário.
Por conseguinte, a Comissão Permanente da AN é, sim, competente para autorizar a detenção de um Deputado, fora de flagrante delito.
O 2º argumento, de que a autorização concedida pelo Parlamento se circunscreveu à detenção e audição do Deputado, mas não para se lhe impor a prisão preventiva, não faz o menor sentido.
Fosse assim, teríamos a bizarra situação em que ao Poder Judicial assistiria competência constitucional para ouvir em primeiro interrogatório um Deputado sob detenção, devidamente autorizada pelo Parlamento, mas já não para lhe impor a medida de coacção que se afigura mais ajustada.
Pergunta-se: afinal, qual seria a justificação e a utilidade desse primeiro interrogatório pelo Poder Judicial de um Deputado sob detenção? Seria só para constar? Será próprio de um legislador, que se presume razoável, prever diligências judiciais absolutamente inúteis?
Isso para dizer que, no limite, estar-se-ia perante uma antinomia constitucional que teria que ser superada por via interpretativa, com a prevalência do bom senso e da razoabilidade, como exige a hermenêutica.
O 3º argumento, isto é, de que um Deputado não pode ser preso fora de flagrante delito, a não ser após o despacho de pronúncia, afigura-se tão estapafúrdio que não devia também requerer muita tinta.
Fosse assim, a imunidade parlamentar, que por vezes é procurada já de caso pensado, passaria a ser o escudo protector para um Deputado prosseguir desabridamente na actividade criminosa, sem que se lhe pudesse pôr um travão antes do despacho de pronúncia, que normalmente só tem lugar meses, se não mesmo anos, depois de se dar início à empreitada criminosa.
Ou seja, mesmo perante prova irrefutável de continuação de actividade criminosa, a um Deputado jamais poderia ser imposta a prisão preventiva, antes de contra ele se proferir o despacho de pronúncia.
Convenhamos que chega a constituir um absurdo, razão pela qual o resultado de uma tal interpretação deve ser também descartado à partida.
Uma palavra final sobre o recurso interposto por 15 Deputados para o Tribunal Constitucional, impugnando a “Resolução” inicial da Comissão Permanente da AN a autorizar, com inteira legitimidade constitucional, como ficou demonstrado, a detenção fora de flagrante delito do Deputado Amadeu Oliveira.
Tal recurso se nos afigura, salvo melhor opinião, manifestamente inviável.
Desde logo porque, como é sustentado na Doutrina, nomeadamente em parecer do Conselho Consultivo da PGR de Portugal, “a deliberação que aprecia o pedido de autorização para um deputado ser ouvido como arguido reveste a natureza de acto político”. Assim sendo, é insusceptível de impugnação judicial.
Trata-se de um entendimento que encontra respaldo no constitucionalista Jorge Miranda, para quem “excluídos do controlo do Tribunal Constitucional encontram-se os actos políticos”.
A razoabilidade de um tal entendimento parece estar ao alcance de todos.
Com efeito, admitir recurso para tribunal da resolução da AN que defere o pedido de levantamento da imunidade parlamentar de um Deputado, para que o mesmo responda perante a Justiça, implicaria também admitir recurso, por exemplo da parte do PGR, da resolução que indefere um tal pedido, o que se tem entendido como excluído à partida, precisamente em nome do princípio da separação de poderes.
Entretanto, aguardemos, da nossa parte com serenidade e humildade democrática, pela decisão dos tribunais.
Olavo Freire
Jurisconsulto
Texto publicado originalmente na edição nº1095 do Expresso das Ilhas de 23 de Novembro