É evidente, como aliás tem sido enfatizado por muitos, que ações dessa envergadura não surgem do nada. Elas provêm da semente do mal, do ódio e da propensão para a prepotência e o autoritarismo, da parte de quem se sente ungido por uma espécie de mandato divino para impor a sua vontade. Florescem pelo aturado trabalho de mobilização, assente na persistente e corrosiva descredibilização das instituições, as da Justiça e os seus titulares em particular, apresentados como entes que conspiram contra a Democracia, o Estado de Direito e os direitos fundamentais dos cidadãos, de que urge se libertar. Enfim, advêm de quem - como se afirmou, com assertividade, nos últimos dias, em que muito se fala da liberdade e da democracia - utiliza os nutrientes da democracia para atacar a própria democracia.
O pretexto é sempre o mesmo: decisões judiciais que possam desagradar a um ou outro cacique, de forte influência na sociedade ou mesmo nas instâncias políticas, às quais se chega até a pedir a cabeça de juízes, sob a chantagem de, ou se anui a essas exigências ou se convoca o povo para a rua, simpático eufemismo para se brandir a ameaça da via insurrecional.
Pelo meio, e para se emprestar suposta legitimidade e credibilidade a tais reivindicações, lança-se uma intensa campanha de vilipêndio aos tribunais e aos magistrados, na expectativa de que os ataques serão retomados nos meios de grande difusão e nas redes sociais, transformando fake news em verdade.
É nesse quadro, em que prevalece o vale tudo, que não podem deixar de ser encaradas as preleções com que um ex-Ministro da República decidiu, por ocasião do Dia da Liberdade e da Democracia, e em texto publicado na edição do Expresso das Ilhas, do passado dia 11 de janeiro, vergastar as instituições judiciárias, e não só:
“A democracia e o Estado de Direito não rimam com a existência de instâncias judiciais que se julgam acima da lei e da constituição, quando proferem sentenças manifestamente inconsistentes, incoerentes, contraditórias, eivadas de preconceitos e de reservas mentais.
A democracia e o estado de direito verdadeiros e efetivos não consentem que um deputado seja detido e metido na prisão, através de uma autorização concedida por um órgão(?) sem legitimidade para decidir naquele espaço temporal, em flagrante violação do nº 1 do artigo 148º, sem que nenhuma instituição, sobretudo aquelas criadas e garantidas para garantir os direitos e garantias dos cidadãos e a legalidade democrática, tenham movido uma «palha» para que se cumpra a lei e se respeite as regras do estado de direito”
No que toca às “instâncias judiciais” é notório que o ex-governante está a fazer referência ao Tribunal da Relação de Barlavento (TRB) e ao seu acórdão, pelo qual um Deputado da Nação foi condenado por crime de atentado contra o Estado de Direito.
E é esse aspecto que não deixa de causar estupefação, pois o que ali ficou condensado é o julgamento da integridade de uma decisão de um Tribunal Superior do nosso País. Mais grave ainda, o julgamento do carácter dos juízes que a proferiram, a quem se imputa terem até agido com reserva mental, que, na definição legal, significa agir com deliberado propósito de enganar.
Com o devido respeito por entendimento contrário, isso extravasa a crítica legítima para passar a ser insulto gratuito, não legitimado em Democracia, mesmo que sob a capa da liberdade de expressão.
Ainda assim, cabe perguntar: que autoridade em Direito e, mais importante ainda, no domínio da Ética e da Moral, que, tendo escrutinado o acórdão do TRB, a que se refere esse ex-governante, terá chegado à conclusão de que se está perante uma sentença manifestamente inconsistente, incoerente, contraditória, eivada de preconceitos e de reserva mental?
A resposta é simples: nenhuma! Pelo menos nenhuma foi citada.
Efectivamente, por estranho que pareça, é esse mesmo ex-Ministro da República que, depois de chamar a si a superior autoridade em tão escorregadia matéria, decidiu aventurar-se, não se compreendendo bem por que razão, nesse julgamento acintoso em relação à integridade de uma decisão de um Tribunal e ao caráter dos que a proferiram, bem ciente de que, com isso, está a incitar à desautorização e à deslegitimação social das decisões dos tribunais.
Prosseguindo no mesmo registo, verbera o articulista que não se tenha movido uma “palha” contra a prisão de um Deputado, autorizada, segundo ele, em flagrante violação do artigo 148º, nº 1, da Constituição.
Mais uma vez, a acusação de que todas as instituições da República, em especial o Parlamento e os Tribunais, estarão a incorrer, por acção ou omissão, em flagrante violação da Constituição.
Ora, saber se terá havido violação do artigo 148º, nº 1, da Constituição, na parte em que dispõe que a Comissão Permanente da AN funciona “nos intervalos das sessões legislativas”, parece relevar da exclusiva competência dos Tribunais, recomendando a elementar prudência que se evite afirmações categóricas e incendiárias a esse respeito.
Seja como for, aprende-se bem cedo no curso de Direito, em particular na cadeira de Introdução ao Estudo do Direito, que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas sim reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo.
Na verdade, existe, por norma, uma enorme distância entre o texto de uma disposição legal, cujo entendimento requer apenas saber ler, e o pensamento legislativo nela vertido, cuja reconstituição exige saber ler e, sobretudo, saber interpretar.
Efectivamente, se apenas saber ler fosse suficiente, não seriam precisas nem escolas de Direito, nem as profissões jurídicas, a começar pela de Advogado.
Também constitui bê-á-bá em Direito que se deve rejeitar liminarmente qualquer interpretação que possa conduzir ao absurdo.
Isso para dizer que tomar a expressão “nos intervalos das sessões legislativas” à letra, isto é, sem un grano salis, como faz o articulista, quando se sabe que cada sessão legislativa tem precisamente a duração de um ano, nos termos do artigo 151º, nº 1, da Constituição, significa que, afinal, (e é aí que reside o absurdo) jamais haveria espaço temporal para a Comissão Permanente da AN funcionar. Nem mesmo no período que vai de 1 de Agosto a 30 de Setembro.
É que, é de La Palice, a uma sessão legislativa de um ano, sucede imediatamente outra, sem qualquer “intervalo” entre as duas, nos exactos termos em que a um ano do calendário sucede outro, também sem qualquer intervalo. À meia-noite do dia 31 de Dezembro termina um e começa outro.
Enfim, evidências que só escapam aos que estão apenas apostados, sabe-se lá porquê, em tratar de saúde à Democracia e ao Estado de Direito, pelo sistemático vilipêndio das suas instituições e dos seus titulares. Afinal, não se pode perder de vista que os órgãos vitais estão para o corpo humano assim como as instituições estão para o Estado de Direito. Portanto, vilipendiar as instituições e os seus titulares é vilipendiar o próprio Estado de Direito.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.