A história de Cabo Verde é rica em exemplos seculares de projectos que são concebidos, mas levam décadas e décadas para serem concretizados, quando não abandonados. Sem falar das obras de Santa Engrácia.
Estas reflexões ocuparam a minha mente quando se falou, há pouco tempo, a respeito do voto electrónico. Primeiro, encarei a notícia com um sorriso maroto e uma afirmação em silêncio: conheço de ginjeira este filme; depois, com apreensão, porque os dados avançados diziam que há uma década se discute este assunto. Tomara que assim fosse! Na verdade, a discussão em torno do voto electrónico vai para três décadas e, pelo menos, vinte e quatro anos podem ser demonstrados, sem quaisquer dificuldades.
Corria o ano de 1994, quando se fez uma grande reforma eleitoral, cujos aspectos essenciais são do conhecimento público, como a centralidade da Comissão Nacional de Eleições, que passou a ser órgão permanente da administração eleitoral, com os ganhos conhecidos, para satisfação de todos quantos contribuíram para a sua mudança de natureza jurídica e afirmação ao longo destes anos. A transição política cabo-verdiana era então objecto de atenção particular da parte de vários países e a consolidação do sistema eleitoral e da administração eleitoral muito acarinhada.
Nesse contexto, não surpreende que a África do Sul e o Brasil tivessem mostrado interesse em apoiar o país na implementação do voto electrónico, especialmente este país de língua oficial portuguesa, que é uma potência na matéria. No entanto, a sua complexidade, num país em que a informatização da Administração Pública dava os seus primeiros passos e os recursos técnicos e humanos ainda pouco significativos, aconselharam prudência. Por isso, aguardou-se para uma melhor oportunidade.
A oportunidade surgiu no momento da elaboração e aprovação do Código Eleitoral, em Fevereiro de 1999. Assim, a respectiva lei preambular estatuiu que «o Governo, ouvidos os partidos políticos legalmente constituídos», podia «realizar experiências-piloto de votação electrónica, em um ou mais círculos eleitorais». Fazendo contas à vida, fica claro que há vinte e quatro anos a lei consagrou a possibilidade de se avançar, a título experimental, com o voto electrónico, incumbindo o Governo de tal tarefa.
Não é fácil perceber esta omissão, tanto mais que o voto electrónico vem sendo aflorado, aqui e ali, mas nenhum Governo o agarrou. Pela parte que nos toca, já nos referimos publicamente nos últimos anos a este assunto, em diversas ocasiões. Inclusive, escrevemos na Nota Prévia à 3.ª edição do nosso Código Eleitoral Anotado, dado à estampa em 2020, o seguinte: «o Governo foi autorizado pela Assembleia Nacional a realizar experiência-piloto de votação electrónica (1999) e ainda aguardamos pela sua concretização, cabo-verdianamente, com tinta indelével a sujar-nos o dedo indicador direito, de eleição em eleição, como que a lembrar-nos que contra factos não há argumentos: somos subdesenvolvidos».
Muito mais se pode acrescentar, mas fiquemos por aqui. Esta omissão governamental insere-se num contexto mais amplo e perturbador de falta de modernização da administração eleitoral, ignorando as determinações legais de utilização de novas tecnologias no procedimento eleitoral, mostrando-se o legislador indiferente perante esta situação, não procurando sequer saber se está ou não a ser cumprido o que legislou.
Mais um exemplo: foi estatuído, em 2007, que o cidadão eleitor identifica-se perante o presidente da mesa da assembleia de voto, com o cartão de eleitor, e que a verificação da sua identidade e a conformidade dos seus dados com a inscrição no recenseamento, são feitas com recurso a soluções tecnológicas avançadas, designadamente a comparação de elementos biométricos do eleitor, com a finalidade de assegurar o maior grau de certeza e segurança possível, e nos termos que forem regulamentados pela CNE. Dezasseis anos após o legislador ter dado o mote, onde estão as soluções tecnológicas avançadas? Onde é que se encontra a possibilidade tecnológica de comparação de elementos biométricos do eleitor?
Enquanto não se modernizar tecnologicamente a administração eleitoral, contentemo-nos com tinta indelével, prova provada do nosso atraso, que começa a ser crónico, e que o sistema, pasme-se, é de baixa confiança institucional, pois, os que usam tinta indelével são assim internacionalmente qualificados. Alguns deitam foguetes, pois, temos solução: então iremos desperdiçar a milagrosa tinta que mata a possibilidade de o cidadão eleitor votar mais do que uma vez?! Para quê gastar dinheiro e massa cinzenta com tecnologias que podem falhar? O melhor desta festa é que de balde procuramos base legal para a utilização de tinta indelével, com carácter geral, de eleição para eleição. Um dia o caldo pode entornar!
A situação em que nos encontramos é incompatível com os instrumentos tecnológicos hoje disponíveis, de fácil acesso, num país que se gaba de a sua democracia estar muito bem posicionada no plano internacional e que a digitalização da Administração Pública avança de forma imparável.
Posso conceder, sem discutir, que era muito difícil concretizar o preceito há duas décadas; posso dar de barato que era difícil a sua materialização há uma década. No entanto, fica difícil perceber, por não se tratar de solução generalizada, com natureza imperativa, que nada tenha sido feito, pelo menos que seja do conhecimento público. Não foi possível fazer, e ninguém teve a humildade democrática de nos dizer: tentamos, mas não conseguimos.
O Governo devia pôr de pé um programa de democracia digital, quando a ciberdemocracia ganha raízes e é praticada em vários países. Um programa em que o voto electrónico constitui um de entre vários pilares, mas que tem de incluir a possibilidade de os cidadãos participarem de diversas formas na governação do país ou do município, especialmente quando nos orgulhamos de dispor de uma diáspora relativamente activa nestas coisas, e que vive, na sua esmagadora maioria, em países desenvolvidos. As conquistas digitais do país permitem a concepção e a materialização deste programa, sem problemas de maior, sendo difícil de entender a razão pela qual estamos no estado em que estamos.
Não restam dúvidas de que nos encontramos aquém do possível no que tange à modernização da administração eleitoral. Neste ritmo do nada fazer, talvez daqui a quatro décadas se possa generalizar imperativamente esta medida, mas já não farei parte do mundo dos vivos. Resta a consolação de que alguém um dia se lembrará deste texto. Tristi gó!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.