A data coincide grosso modo com a declaração do fim da emergência mundial criada pela covid-19 e com a recuperação da economia para os níveis de 2019. O Primeiro-ministro na sua alocução ao país fez questão de proclamar que “Salvamos vidas. Protegemos empregos, rendimentos e empresas. Investimos na recuperação e na retoma económica”. O tom quase propagandístico das mensagens, com enfase na auto-glorificação pelo conseguido, acaba por ser uma espada de dois gumes.
Se por um lado promete vantagem ao governo numa perspectiva de ganho político-eleitoral, por outro abre caminho para reivindicações de vários sectores da sociedade e em particular as populações mais vulneráveis que também querem ser compensados pelos sacrifícios, rendimentos e oportunidades perdidas. As críticas da oposição, em resposta, além de disputar o mérito e a qualidade das soluções encontradas pelo governo, procuram canalizar as reivindicações das populações, amplificá-las e exigir que sejam cumpridas imediatamente. E justificam dizendo que se o país está a crescer em média 12% ao ano, como proclama o governo, então que os efeitos desse crescimento sejam sentidos por todos de forma equitativa.
É mais um debate em que uns e outros não se ouvem e não há acordo praticamente sobre nada. O resultado é que dificilmente se vai manter a perspectiva real do que foram realmente estes anos de crises sucessivas e interligadas e o quanto é que se está longe de as ultrapassar. Tão cedo não se vai ter noção dos estragos permanentes causados ao nível pessoal e familiar, em termos designadamente de rendimento nas escolas, carreiras profissionais e saúde mental, mas também social ao nível da coesão nas comunidades, postura cívica e sentido de pertença. As erupções de violência, o uso de armas de fogo a atracção dos gangs sobre os mais jovens continuarão a pôr a sociedade em sobressalto sem que se chegue a acordo sobre como lidar com esses fenómenos.
Enquanto o discurso público for dominado pelo tipo de irrealismo quanto aos objectivos e aos meios que se vê, por exemplo, na abordagem de problemas como a produção agrícola, os transportes aéreos e marítimos e a luta contra a pobreza dificilmente vai-se deixar de cometer os mesmíssimos erros do passado. Para o governo, que faz o balanço com triunfalismos, positividade e good vibes, e para oposição, que sobe a fasquia nas reivindicações sem preocupação com os custos, tudo aparentemente se resume a ir empurrando o país com a barriga. A diferença numa avaliação futura é que as frustrações serão maiores porque as expectativas foram elevadas a outro patamar, os custos maiores porque, com sucessivos fracassos ou ineficiências várias, as dívidas acumularam-se, as instituições e a própria democracia fragilizaram-se porque se mostram incapazes de inflectir o processo de perda de credibilidade.
Não é de hoje que se procura apostar na agricultura com mobilização de água e agronegócios, ou se procura abrir voos da TACV para se ligar à diáspora e desenvolver um hub aéreo e se implementam programas de luta contra a pobreza. Fez-se no passado várias vezes e os resultados são de todos conhecidos em termos de empobrecimento progressivo do meio rural acompanhado de perda de população, aumento da dívida pública e crescimento da pobreza extrema nas cinturas urbanas. Agora promete-se fazer basicamente o mesmo num futuro próximo com água dessalinizada, com mais aviões e barcos, com empreendedorismo massificado e pensão social mais abrangente e espera-se que os resultados sejam diferentes. Caso para perguntar se a definição de insanidade atribuída a Albert Einstein se vai aplicar.
Winston Churchill num momento difícil da II Guerra Mundial teria dito que nunca se deve deixar uma boa crise ser desperdiçada. Infelizmente não foi só uma crise, mas várias crises que Cabo Verde deixou desperdiçar. O que já vinha acontecendo desde de 2017 com as secas sucessivas juntou-se em 2020 uma crise pandémica sem precedentes que, pelo enorme impacto global e local que teve, podia ser a grande oportunidade para o país repensar as suas opções, rever a sua forma de fazer política e mudar a atitude. Passou ao lado.
A generosidade do resto do mundo que se seguiu na forma de ajuda financeira, vacinas e equipamentos, ao tranquilizar os espíritos, retirou motivação para mudar. Em acréscimo, ao reforçar o papel já tradicional do Estado na reciclagem da ajuda externa, com o seu efeito concomitante de reproduzir o espírito de dependência que favorece esquemas de poder em detrimento da autonomia e iniciativa da sociedade e das pessoas, acabou por inibir ainda mais a vontade de fazer diferente. Não estranha que depois que a policrise se complicou com o aumento da inflação, a invasão da Ucrânia e o aumento brusco dos preços de alimentos e combustíveis ainda não se notam na sociedade indícios de debate sobre a nova realidade global. Um dia, porém, o país terá que repensar o seu futuro num mundo que claramente está em mudanças profundas tanto em termos geopolíticos como económicos.
Os foguetes lançados no balanço dos dois anos e as críticas azedas da oposição acontecem num ambiente que ainda se espera pela bonança prometida nos projectos de mudança climática, transição energética, digitalização e economia azul para que, no essencial, tudo se mantenha igual. E como até agora aconteceu, ficam adiados os esforços no sentido de revigorar o espírito de solidariedade que o país tanto precisa para diminuir a crispação política, aumentar a confiança interpessoal e reforçar a credibilidade das instituições.
Um bom passo em frente seria deixar de lado o optimismo, a positividade e good vibes de quem simplesmente acredita que as coisas vão dar certo, crença essa que pode resvalar para o irrealismo. Em troca, cultivar a esperança que parte da convicção de que com os pés bem ficados na terra se pode agir de forma estratégica e solidária para assegurar que se vai atingir os objectivos desejados com ganhos para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.