É verdade que sempre que a oportunidade se oferece todos falam da tripla crise da seca, da Covid-19 e da guerra da Ucrânia e da necessidade de mitigação dos seus efeitos junto das populações. Mas fica-se por aí. Entretanto, a realidade passa ao lado quando se propõe a injecção de 3 milhões de contos na TACV para depois a reprivatizar em 2024, ou quando se proclama o presidente da Câmara da Praia, quase a meio do mandato, mas já sem maioria, autarca do ano e se apela à descolonização da administração pública pelos partidos políticos. De facto, questões assim formuladas (como o futuro dos transportes aéreos, os problemas de legalidade e de accountability no poder local e a importância crucial de se ter uma administração pública competente, servidora do interesse público e engajada com o desenvolvimento do país) não se prestam para iniciar um diálogo construtivo. Como seria de esperar, só justificaram mais um “round” de ataques e contra-ataques que deixam o país crispado, exausto e sem soluções.
O momento, porém, não devia ser de distracções e muito menos de perca de esperança. O Banco Mundial há duas semanas chamou a atenção para o risco de uma recessão global com particular impacto nos países em desenvolvimento. Na origem está a quebra sincronizada da dinâmica de crescimento das maiores economias do mundo - Estados Unidos, Europa e China - provocada em parte pelo aumento das taxas de juro, pela escalada de preços no sector energético e pela inflação a níveis não vistas há décadas. Os efeitos já se fazem sentir principalmente entre os países mais pobres que por conta da corrida ao dólar têm que lidar com menos investimento externo, com um serviço da dívida denominado em dólar mais pesado e com importações mais caras. A situação é agravada com as incertezas na guerra na Ucrânia que cada dia mais se transforma num confronto directo entre o Ocidente e a Rússia.
A possibilidade real do conflito acabar por envolver o uso de armas nucleares mesmo que só ao nível táctico dos campos de batalha elevam o rol de imprevistos para um outro patamar. O aviso das autoridades americanas perante as ameaças russas de uso de armas nucleares que as consequências poderão ser catastróficas cria um cenário até há pouco tempo inimaginável. Também a se verificar o enfraquecimento do regime de Putin, devido às perdas na guerra, à reacção da população russa à mobilização de reservistas das forças armadas e ao descontentamento das elites e dos militares e de outras forças de segurança, outros imprevistos poderão surgir que dificultem uma saída para o conflito, já de si difícil de se encontrar a contente de todos.
Por outro lado, a continuidade do conflito por mais tempo numa espécie de guerra de atrito sem fim à vista pode acelerar ainda mais o processo de desglobalização e o aparecimento de blocos económicos rivais. Um processo que será certamente acompanhado por constrangimentos nas cadeias de abastecimento e pela volatilidade dos preços de produtos energéticos que, por sua vez, tornarão mais difícil controlar a inflação e evitar a recessão económica que segundo alguns observadores poderá estender-se até 2024.
Isso tudo sem falar de mudanças mais ou menos profundas ou mesmo radicais que poderão verificar-se no panorama político das democracias enquanto as suas populações enfrentam dificuldades derivadas do aumento do custo de vida e do desemprego e lidam com questões culturais como a diversidade, lutas identitárias e igualdade de género num ambiente de acolhimento de migrações. Na Itália a eleição esta semana da direita radical para o governo pode ser um sinal de eventuais mudanças na configuração de forças políticas de outras democracias (caso também da Suécia), que eventualmente poderão levar a tensões no relacionalmente no campo dos países democráticos, (exemplo da Hungria), aumentando ainda mais os imprevistos nestes tempos de incerteza.
Cabo Verde sem ainda ter recuperado completamente da recessão de 2020 provocado pela pandemia da Covid-19 e em sectores vitais como o turismo sem atingir os números de 2019 terá agora que enfrentar uma situação internacional difícil que afecta particularmente os países e as economias com que o arquipélago e as suas comunidades têm uma relação mais estreita. Agora que o país vai entrar na época alta do turismo provavelmente um factor que poderá condicionar o fluxo turístico poderá ser a tendência para a depreciação da libra esterlina considerando que a maioria dos turistas vem do Reino Unido. Mais uma razão para qualificar e diversificar a oferta turística como, aliás, toda a economia nacional na perspectiva de se ter o país mais bem preparado para as incertezas actuais. Para isso, porém, são necessárias políticas consistentes e um consenso nas reformas de fundo que o país precisa, mas que infelizmente mesmo com a tríplice crise de que todos falam, não parece que haja muita disponibilidade para estabelecer o diálogo que implicaria. Prefere-se reduzir a política à condição de luta tribal.
Numa entrevista recente, o presidente da república José Maria Neves disse e bem que a África não pode transformar-se num muro de lamentações. O problema é quando se faz do muro de lamentações um modelo de negócios e se vive do que se consegue captar a partir da generosidade ou do sentimento de culpa dos outros. Ou então toma-se a lamentação no muro como forma de estar na vida e entra-se numa espiral descendente de vitimização carregado de frustração e de ressentimento que não deixa trilhar o caminho da dignidade, da autonomia e da responsabilidade. Nas duas circunstâncias sacrifica-se a liberdade e o desenvolvimento.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1087 de 28 de Setembro de 2022.