Durante dias seguidos na comunicação social e nas redes sociais pronunciamentos vários avisavam contra atentados à liberdade de expressão e denunciavam posições que alegadamente punham em causa o Estado de Direito e a democracia no país. E tudo isso por causa de um painel formado por duas personalidades para comentário político do telejornal de domingo da televisão pública.
A TCV não tem comentadores residentes. Aparentemente não vê necessidade de os ter talvez pelos custos associados de pagamento. É claro que isso tem consequências designadamente em termos de sustentabilidade dos painéis e qualidade do comentário. Uma delas, por exemplo, é que organiza painéis com convites ad hoc a personalidades que muitas vezes acabam por ser ex-dirigentes partidários e ex-governantes. Como a televisão pública está obrigada por comando constitucional a garantir a expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião com um painel de dois convidados o normal é que, sendo um deles figura notória de um dos grandes partidos, o outro tenha expressão similar na área política contrária.
Depois de dois painéis, um constituído por uma ex-governante e dirigente partidário da oposição e por um académico e professor universitário (9 de Julho) seguido de outro também constituído por dirigente partidário da oposição e tendo por contraponto uma figura apartidária (23 de Julho), houve críticas. Algum reequilíbrio se procurou ter no terceiro painel que já veio formado por dois dirigentes dos grandes partidos (30 de Julho). Com esse ajuste, porém, como dizem os portugueses, caiu o Carmo e a Trindade e de repente surgem denúncias num tom que pelo dramático podia-se pensar que o Estado de Direito democrático estava na iminência de se desmoronar.
Já se vem tornando frequente que face à discordância em relação a certas matérias, nem sempre de grande relevância, convenientemente se verifique um extremar de posições que tende a pôr em causa as instituições e a descredibilizá-las. Há mesmo quem entenda essa forma de actuar como o verdadeiro exercício de cidadania. Esquece-se facilmente que só se tem cidadania plena quando numa ordem constitucional consensual estão garantidos os direitos fundamentais dos cidadãos, existe o primado da lei e assegura-se a independência dos tribunais para dirimir conflitos. Atirar “pedras” contra o sistema, querer mudá-lo por vias que não os processos e procedimentos previstos e fazer crer que todos os tribunais no seu conjunto (tribunal constitucional, tribunais judiciais, tribunal de contas) não são isentos nem competentes, é, de facto, deixar os cidadãos completamente desprotegidos em relação a ditadores e a demagogos. Factos recentes em vários países demonstram isso e Cabo Verde sabe isso de experiência própria.
Especial responsabilidade têm as forças políticas que pelo seu papel no sistema político podem recorrer a instrumentos próprios para assegurar o normal funcionamento do sistema, podem melhorá-lo com alterações na legislação e até conseguem mudar as regras pela via da revisão constitucional. Infelizmente, parece que a preferência é para criar ruído, para descredibilizar e passar a ideia que a corrupção entremeia e perpassa tudo. Fiscalizar para evitar a corrupção é importante, mas toda a intervenção política não pode esgotar-se no activismo contra a corrupção, à procura de ganhos imediatos sobre o adversário. Corre-se o risco de perder a visão de conjunto sobre o sistema e de não se mostrar suficientemente responsável pela sua funcionalidade e estabilidade.
Um outro risco que se pode incorrer é de não ver outros problemas de fundo que mesmo quando trazidos com particular assertividade, como aconteceu com os alertas do Banco Mundial no memorando de 14 de Julho sobre o cansaço do modelo de crescimento de Cabo Verde e seu possível esgotamento, têm dificuldade em atrair o olhar da classe política e da cidadania activa que circula nas redes sociais. Não espanta que o Relatório do Estado da Economia publicado pelo Banco Central de Cabo Verde, que também veio alertar para as dificuldades do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde, não tenha despertado mais atenção.
Mas a verdade é que, nos dois últimos parágrafos da avaliação global da economia, o BCV foi explícito em dizer que o potencial de crescimento da economia está ainda condicionado por níveis baixos da produtividade total dos factores, como já o Memorando do BM tinha assinalado. Também acrescenta que é extremamente importante reduzir o nível da dívida, avançar com reformas das empresas públicas e promover os investimentos em sectores catalisadores para aumentar e elevar o potencial de crescimento. É evidente que sem isso não se pode promover a inclusão social e construir resiliência a choques exógenos.
Infelizmente, pelo tipo de matéria que gerou euforia com que se entrou na silly season, pode-se ver que o renovar de alertas não vai provocar qualquer recentragem na abordagem dos problemas do país. O mais provável é que, até a rentrée política e ao regresso à política habitual, se procure explorar frivolidades políticas para manter as hostes partidárias mobilizadas. Entretanto, mudanças tectónicas nos campos geopolítico e económico vão acontecendo por aí sem que o país seja capaz de focar para “arrumar a casa” e preparar-se tanto para aproveitar as oportunidades como para resistir aos choques externos.
No relatório do BCV compara-se num quadro (fig.4) o impacto da crise pandémica sobre Cabo Verde, sobre a África subsaariana e os países da CEDEAO. A contracção da economia no país foi de 19,3% do PIB enquanto na África ficou-se por 1,7% e na CEDEAO por 0,6%. A vulnerabilidade do país ficou aí bem clara. Para a diminuir é evidente que Cabo Verde precisa de um engajamento mais sério e mais focado da sua classe política nos seus reais problemas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1132 de 9 de Agosto de 2023.