Eu também tenho um sonho

PorLígia Dias Fonseca,4 set 2023 8:09

​Estava eu a ler o discurso de Martin Luther King, Jr, «I have a dream», proferido a 28 de Agosto de 1963 (4 dias depois de eu nascer!), quando o escritório se encheu com o som de uma gargalhada maravilhosa que dá o toque de vida e felicidade neste escritório há já uns bons anos.

Quando ouvimos esse som, já sabemos que será secundado por uma outra gargalhada não tão potente, mas igualmente afinada e animada e por palavras de boas notícias, sejam elas do mundo, de uma decisão judicial favorável ou de um simples facto doméstico. Desta vez, o motivo da alegria foi a vitória conseguida pelos Tubarões Martelo no jogo contra Venezuela, no mundial de basquetebol a decorrer no Japão. As minhas colegas, donas destes dons de som, entraram pela minha sala, vibrando com a nossa vitória e foram beijos e abraços entre nós. Esta é a alma cabo-verdiana. Um país pequeno, no meio do Atlântico. Lutando contra todo o tipo de dificuldades, sem ouro, nem petróleo, mas nunca desistindo de ser tão grande como qualquer outro país, de aspirar a todos os sonhos e a lutar por isso. Esta nossa garra de vencedores, já nos sentou no Conselho de Segurança das Nações Unidas, elevou-nos a país de rendimento médio e estamos nos lugares cimeiros de todos os índices de boa governação, democracia e respeito pelos direitos humanos e, claro, fez-nos chegar ao mundial de basquetebol! Neste mundial fala-se da mais pequena nação, hoje com esta vitória a curiosidade aumentará, o «Cântico da Liberdade» já foi entoado e não faltaram adeptos nacionais, trajados a rigor a acompanhar os movimentos da seleção. Onde Cabo Verde vai, há sempre gente que empunha a bandeira, veste-se de azul e faz a festa. Sim, porque a vida é festa e como todos os feitos que o país consegue são muito, mas muito mesmo, custosos, alimentados essencialmente pela vontade de vencer, qualquer pequena vitória tem de ser festejada em grande, para que continue a alimentar o sonho e a nossa certeza de que temos capacidade de conseguir realizá-lo.

Luther King, em 1963, disse que a Liberdade não pode ser gradual, ou somos livre ou não somos. O mais ou menos livre, não é liberdade. A liberdade que depende de recursos financeiros não é liberdade. Temos experiência disso entre nós. Sistematicamente ouvimos falar na autocensura, isto é, profissionais que não exercem a sua função com o rigor e de acordo com as normas técnicas e deontológicas da sua profissão porque receiam perder o contrato, não ser promovidos ou perder benesses. A tentação de impor uma forma de atuar ou até de pensar, a tentação de controlar a verdade, a tentação de que os fins justificam os meios, são manifestações típicas do poder e que se vão desenvolvendo conforme conseguem ou não ser permeáveis e atacar o tecido social quer pela sua aceitação expressa ou pela cumplicidade silenciosa. E quando aqui me refiro ao poder, quero abranger todas as formas deste: político, económico, religioso, patriarcal, etc.

Não se pode ignorar que num país onde as oportunidades existentes exigem muito trabalho, recursos e dedicação para se concretizarem e terem sucesso, é muito difícil um cidadão arriscar pelo que, a maior parte das vezes, ficar na zona de conforto é a solução escolhida. Assim, se o cidadão já conseguiu um contrato de trabalho, se a chefia o condiciona, direta ou indiretamente, a realizar o trabalho conforme mais lhe convêm mesmo que seja contrário aos princípios éticos e deontológicos da profissão, é muito difícil esperar que esse trabalhador se arrisque a perder o seu lugar tentando fazer o trabalho da forma eticamente correta. E isto não acontece só aos que trabalham por conta de outrem. Acontece a todos, mesmo aos que estão em certos trabalhos designados, comumente, de funções liberais.

Para evitar estas situações, só há um caminho: o da consolidação do Estado de Direito Democrático, onde as regras de acesso a todos os serviços e funções públicas sejam definidas com rigor, sem regras de exceção, e onde as instâncias de controlo funcionem. E a primeira instância de controlo são os cidadãos informados e formatados por uma cultura da Constituição, isto é, da liberdade. Os cidadãos conscientes dos seus direitos e observadores dos seus deveres são capazes de se unir e criar barreiras de proteção contra práticas abusivas e definhadoras da liberdade. Outro ingrediente igualmente importante é a competência. Prescindir de um recurso humano com boa preparação técnica e competência profissional é deitar fora uma mais valia e as empresas, mesmo o Estado, não gostam de abrir mão do que lhe pode fazer render mais. E nestas coisas não há filiações ou simpatias políticas. Esta componente da simpatia política não deve extravasar os lugares corretamente designados de confiança política. Sempre que um profissional fora desse âmbito atue de acordo com conveniências políticas deve ser classificado como incompetente e ser dispensado do serviço público.

Como mãe de uma mulher digo mil vezes à minha filha: «Tens de cuidar da tua liberdade, não podes deixar que ela se perca. Tens de estudar com afinco e preparar-te para teres uma profissão que garanta a tua sustentabilidade, que te permita dizer «não» sempre que queiras. Não podes cair em situações em que tu própria te escravizes por qualquer tipo de dependência ou de ignorância.»

Na Cimeira de Chefes de Estado da CPLP realizada ontem em S.Tomé, o tema maior continuou a ser o da mobilidade ( tema este que deu o passo decisivo durante a presidência de Cabo Verde), agora com a tónica na juventude. Considero que a mobilidade é também um instrumento para a liberdade no seu todo. A concretização da mobilidade dentro da CPLP será capaz de melhorar as condições de trabalho em cada um dos nossos países, obrigando-os a oferecerem aos jovens não só melhores salários, mas também capacidade de desenvolvimento profissional, cientes de que se estes se sentirem condicionados na sua liberdade profissional facilmente baterão com as portas e apanharão o primeiro voo para outras paragens.

É isso que tenho visto, por exemplo em Portugal. Os nossos jovens que antes deixavam Cabo Verde e ficavam em Portugal, agora sobem pela Europa adentro, buscando países com melhores salários e regalias laborais. Com maior mobilidade, também Cabo Verde procurara atrair e fixar os jovens quadros, dando-lhe condições de se sentirem felizes e valorizados cá. E a felicidade não tem a ver necessariamente com altos salários. Sabem que os jovens agora estão a largar empresas que embora tenham bons salários não têm boas condições de trabalho? Dizem que foi uma das coisas boas aprendidas por causa da pandemia da Covid-19.

Pela minha filha e por todas filhas e filhos desta nossa Nação, continuo a acreditar no sonho da Liberdade e a lutar pela sua realização nestes já famosos 10 grãos de terra.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1135 de 30 de Agosto de 2023.  

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,4 set 2023 8:09

Editado porAndre Amaral  em  27 dez 2023 23:28

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