O percurso musical de Dany Mariano

PorCésar Monteiro,18 dez 2023 8:15

César Monteiro | Sociólogo e investigador
César Monteiro | Sociólogo e investigador

​A música cabo-verdiana, considerada um dos esteios maiores do universo identitário e simbólico nacional, tem sido, desde sempre, construída, reproduzida e recriada através, também, do prestimoso contributo dos compositores e intérpretes, tanto nas ilhas como na diáspora, num processo de criação e de prática musical, que a valorizam e a projetam para patamares cada vez mais elevados da cultura transnacional.

Na linha dessa valiosa prestação de homens e mulheres fazedores de cultura, tendo em mira, em última análise, a fixação da memória coletiva, inscreve-se a figura incontornável da música nacional de Daniel Figueira Lopes da Silva Mariano, nascido na Rua São João, Cidade do Mindelo, São Vicente, a 17 de janeiro de 1956, precisamente na casa que pertencia ao seu avô materno Djô Figueira, então sheep chandler. Oriundo de uma família de escritores, ensaístas, poetas, músicos e artistas plásticos cabo-verdianos, Dany Mariano, nome por que é sobejamente conhecido na vida musical, acompanhou os seus pais para São Nicolau, em 1959, transferidos, na altura, como funcionários públicos, quando contava ele apenas três anos de idade, e, nessa ilha, conclui a primeira classe de instrução primária. De regresso a São Vicente, em 1964, Dany, filho primogénito de D. Maria de Fátima Figueira Mariano, professora do ensino primário aposentada, e de Daniel Estanislau Lopes da Silva Mariano, funcionário administrativo já falecido, frequentaria e concluiria a segunda, terceira e quarta classe para, de imediato, prosseguir os estudos liceais nessa mesma ilha. 

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A despeito de alguma mobilidade de um lado para outro imposta pela profissão dos pais, a infância e a adolescência de Dany, no entendimento do próprio compositor mindelense, decorrem num ambiente de serenidade com “alguma traquinice” pelo meio, é certo, própria da idade, sem, todavia, “nunca ter faltado nada em casa dos meus pais, graças a Deus”. Ao ambiente de “descontração, muita brincadeira e felicidade” no qual diz ter vivido Dany Mariano viria a juntar-se muita música que, aliás, desde tenra idade, encontrou em casa dos pais, através de rádio transístor, gira-disco e pick-up, numa altura em que, de resto, as canções de Roberto Carlos se difundiam rapidamente, em S. Vicente. Do lado familiar, o avô paterno João de Deus Mariano tocava violino e violão e, assim, desde cedo, nesse ambiente de informalidade, Dany foi ganhando o gosto e a paixão pela música. Em 1968, quando apenas tinha 12 anos, o seu tio paterno, Dante Mariano, que descobrira no sobrinho alguma vocação musical, ajuda-o a formar um pequeno grupo chamado Los Metralhas, do qual também faziam parte os irmãos Mário (14 anos), Pomba (12 anos) e Tólas Lima (10 anos), todos eles pré-adolescentes. Nessa efémera banda, que chegou a atuar no intervalo de um baile de casamento com os instrumentos elétricos do grupo Chave de Fenda (Los Gatos Bravos), Dany era baterista e, mais tarde, entusiasmado com os preciosos ensinamentos de violão do seu companheiro Mário Lima, aprendeu alguns acordes e, de seguida, começou a cantar algumas músicas de Roberto Carlos e de outros cantores de sucesso da época. Desfeita a banda em 1971, Dany, mais tarde e nesse mesmo ano, integra Los Padritos, outro grupo musical também efémero criado pelo famoso Padre Simões, em S. Vicente, uma figura eclesiástica popular, que imprimiu grande dinamismo à música na ilha do Porto Grande e marcou, de forma indelével, uma geração de jovens músicos que então emergiam. Da referida banda do Padre Simões faziam parte, além do próprio Dany, Carlos Lola, Djô D’Eloy, Tchibita, Bibino, Manuel Paris e Rui Varanda. A partir de abril de 1974, no período de efervescência política e cultural que imediatamente antecede a independência do país, Dany Mariano passa a integrar outro grupo musical, igualmente efémero, denominado Revolução do qual também faziam parte Tey Santos, Djô d’Eloy e Manuel Paris.

Na verdade, o percurso musical de Dany começa em força quando, em 1974, a convite do guitarrista, teclista e compositor, Antero “Tey” Barbosa, integra o extinto conjunto musical Kings, fundado em julho de 1971, por iniciativa “do Aníbal e do Figura (Amílcar)”, a julgar pelas declarações prestadas por Mick Lima, baixista e percussionista da aludida banda, a Carlos Gonçalves, jornalista e investigador musical (2022). Após digressões por vários países do mundo (Guiné-Bissau, Senegal, Portugal, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Itália, França e Estados Unidos da América) e gravação de dois discos com o conjunto Kings, em 1978, Dany Mariano resolve iniciar a sua carreira a solo em 1982 e, com arranjos de Paulino Vieira, grava o seu primeiro disco de sucesso Raizes, , através do qual apresenta uma proposta inovadora para a música de Cabo Verde, particularmente para o género da morna. Dois anos depois, em 1984, Dany Mariano integra, em S. Vicente, o MDR – Movimento de Desenvolvimento das nossas Raízes, que, mais tarde, passa a ser designado Gota d’Aga, na Galeria Nhô Djunga, que viria a impulsionar o aparecimento do Festival da Baía das Gatas de que ele é, aliás, um dos fundadores, juntamente com Voginha, Vasco Martins, Vlú, Lúcio Vieira, Blimundo e Tony Miranda. Cumprida a sua missão histórica, o grupo Gota d’Aga desaparece em 1985. Entretanto, em 1987, Dany Mariano associar-se-ia ao projeto musical do conjunto ad hoc Pedra de Calçada integrado ainda por Voginha, Tey Santos, Pinúria Ramos e Renato Júnior e criado apenas com o propósito de gravar, em Portugal, um disco intitulado “Apartheid”, uma fusão de ritmos cabo-verdianos com jazz e rock.

Além de se ter revelado, na altura, grande intérprete e show man no palco, Dany Mariano, é, de facto, um dos grandes compositores que marcaram particularmente as gerações dos anos 70 e 80 pela sua forma desinibida de estar na música e de se comunicar com o público. A sua primeira composição em crioulo “Mundo ca cré” (1973), foi gravada, em primeira mão, pelo conjunto Kings, em 1979, nos estúdios de Hilversum, nos Países Baixos, e incluída, posteriormente, na banda sonora de um filme italiano. As suas obras musicais de monta, que privilegiam a qualidade, ultrapassam três dezenas com destaque, entre outras emblemáticas, para “Mi ê dode na bô Cabo Verde (1980)”, “Na ondas di bô corpu (1980)”, “Mundo ca cré (1973)”, “Gata Morena” (1997),“Vida tem um só vida (1987)”, “Nha Amiga” (1999) as duas últimas feitas em parceria com o saudoso Manel d’Novas. Gravada pela Cesária Évora, “Vida tem um só vida” faz parte, também, da trilha sonora do filme O testamento do Senhor Napumoceno de Araújo. 

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Já na anunciada ponta final da sua carreira musical a solo, Dany Mariano grava, em 2018, o seu segundo CD a solo com as dez composições mais emblemáticas do compositor que, no passado, fizeram grande sucesso como “América Terra d’Hollywood” (2013), “Gata Morena” (1997), “Mi ê dôde na bô Cabo Verde” (1980), “Na Estrada d’Europa (1978)”, “Sandy ”(1980) e “Mulata Coca-Cola(1983)” com uma roupagem nova. Considerado um homem romântico e um observador atento e sensível, que aprecia “as coisas belas da vida”, as principais fontes de inspiração de Dany Mariano como compositor são Cabo Verde e a mulher cabo-verdiana. Nas suas composições, não privilegia nenhum género musical em especial, se bem que tenha composto grandes mornas e coladeras gravadas por cantores e instrumentistas sonantes da música cabo- verdiana como Cesária Évora, Tito Paris, Mariana Ramos, Jorge Sousa, Fantcha, Iolass Pires, Nhâ Kapa, Gabriela Mendes, Mirri Lobo, Lucibela, Albertino Évora, Ceuzany. Grace Évora, Mark Gonçalves, Gardénia Benrós, Zé Galvão, X – Treme, Djoy Splash, Zé Timas, Chico Serra, Naná Almeida, Humberto Ramos, Kim Alves, Samú Cruz e Vaiss.

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Saliente-se, igualmente, que Marco Caminero, cantor latino-americano da República Dominicana, considerado um dos expoentes máximos da atualidade do merengue, interpretou, em 2018, de forma magnífica, e divulgou a conhecidíssima composição “Gata Morena” de Dany Mariano. Além de mornas e coladeras, o compositor mindelense compôs mazurcas, funanás, boleros e sambas. Pai de três filhos, avô e fiel de Armazém aposentado da EMPROFAC, Dany Mariano, reconhecido ativista e batalhador pela assunção dos direitos de autor, é um dos sócios fundadores da Sociedade Cabo- Verdiana de Música (SCM). Assim, cientes do inegável contributo de Dany Mariano como um dos grandes autores e compositores cabo-verdianos, os membros dessa prestigiada entidade elegeram-no, por unanimidade, no passado mês de agosto do corrente ano de 2023, como Prémio Carreira da 2ª Edição do Prémio SCM 2023, numa justa e merecida homenagem pública.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1150 de 13 de Dezembro de 2023.

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Autoria:César Monteiro,18 dez 2023 8:15

Editado porAndre Amaral  em  1 mai 2024 23:28

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