Manuel Brito-Semedo, autor desse ensaio, mostra-se ciente que, tal como acontece noutros países de todos os continentes, a identidade do povo cabo-verdiano é motivo frequente de reflexão por parte das suas elites pensantes e, como noutros locais, se observa, frequentemente, um tratamento marcadamente essencialista ou reducionista deste problema. Igualmente, sabe que já se considerou que a nação tem uma alma única, uma identidade imutável e permanente ao longo da sua história, mas ele apoia-se nas perspetivas teóricas que olham para a identidade como um processo dinâmico e síntese da dialética de múltiplas identidades em permanente evolução.
Suportado nesses alicerces questiona qual a verdadeira identidade cabo-verdiana e analisa as tendências ideológicas subjacentes aos rumos que têm vindo a ser assumidos no desenrolar da nossa História. Prevalece a visão antropológica ao procurar captar as marcas distintivas desta sociedade nas suas mais diversas manifestações. Enquanto a primeira metade do livro nos oferece uma visão temporal, espacial e social da estruturação do processo de crioulização, na segunda metade encontramos uma descrição rica em detalhes das nossas manifestações culturais mais relevantes, nomeadamente, a língua, o folclore, a religião, a habitação, a gastronomia, a música, o artesanato e a literatura.
Ancorado nos conceitos de Nação, Sociedade Escravocrata, Crioulização, Crioulidade e Identidade, este livro encontra o seu pilar temporal na congruência entre o tempo de Portugal e o tempo de Cabo Verde; o seu pilar geográfico na evolução que parte da cidade-porto para o porto-cidade; o seu pilar temático na multidimensionalidade fatorial da cabo-verdianidade; e o seu pilar sociocultural na identidade do indivíduo e da sociedade como produtos de uma estabilização dinâmica aos diversos contextos e circunstâncias de vida no arquipélago.
Brito-Semedo defende que Cabo Verde é um caso sui generis em que o povo, sendo fruto de caldeamento de raças e de instituições, soube cedo encontrar o seu caminho e a sua identidade cultural, tendo a curiosa particularidade de ter uma matriz cultural única, mas sendo composta por gentes cuja identidade foram formatadas pela orografia das ilhas (montanhosa ou plana), pelo período do povoamento, pelos cruzamentos da população, pelas secas e fomes, pela emigração (partidas e chegadas), pela instrução (clerical e pública) e pela imprensa. Neste sentido, é central neste livro que a cultura cabo-verdiana não é produto de uma replicação da base social inicial que foi transplantada no decurso dos séculos para as outras ilhas, mas resulta de um processo complexo e dinâmico, implicando vários recomeços e abrangendo as ações de atores humanos e de atores não humanos.
Por detrás destes recomeços vamos encontrar o fenómeno da circulação como um ator não humano fundamental nas restruturações do processo de construção da identidade cabo-verdiana. Este autor destaca a deslocação de figuras centrais dos poderes eclesiásticos e administrativos reinóis para certas ilhas devido às condições climatéricas destas, como um contributo determinante. Por um lado, a mudança do centro da gravidade política, económica e religiosa da ilha de Santiago para outras ilhas do Arquipélago rompeu a insularidade física e cultural internas, criadas pelas dificuldades de comunicação. Por outro lado, esse processo levou à migração e à circulação geográfica da elite que se encontrava integrada no aparelho da administração, a qual veio a fomentar a vida intelectual em ilhas, dando origem à emergência de novas elites locais.
Isso elucida porque no decurso da nossa evolução social, Santiago foi sede do poder político e administrativo, Boa Vista foi centro do poder económico, Brava, com a sua «Nova Sintra», uma rampa de lançamento da instrução pública, São Nicolau a sede do poder eclesiástico e judicial, e São Vicente, com o seu porto, a base da inovação tecnológica.
Brito-Semedo destaca a relevância de Cabo Verde para Portugal e para a Europa nos dois primeiros séculos do seu povoamento, séculos XV-XVII, e na segunda metade do século XIX, e interliga estes dois momentos com a emergência de dois laboratórios de cultura, dois momentos e duas origens da nossa cabo-verdianidade, relacionados com as circunstâncias que fizeram com que as ilhas estivessem ligadas à economia-mundo.
Por conta disso, Brito-Semedo propõe que, à metáfora usada por António Correia e Silva como título para seu livro-tese – Noite Escravocrata (séc. XV-XVII) | Madrugada Camponesa (séc. XVII-XVIII) – se deva acrescentar mais um período, Manhã da Modernidade (séc. XIX), e propõe três fases, cada uma delas com suas próprias características e atividades associadas, que serviram para a formação social, económica e identitária das ilhas, nomeadamente a fase de extensão do Reino; a fase de endogeneização; e a fase de apoio internacional.
Ciente que o ensaio questiona na medula a narrativa africanista institucionalizada apresentando em seu lugar uma outra narrativa, numa perspetiva mais antropológica da História de Cabo Verde, o autor informa o leitor que pretende abrir caminho para um debate descomplexado e sem qualquer carga ideológica sobre a identidade do cabo-verdiano. É provável que o ensaio seja lido por alguns sectores da intelectualidade crioula como uma provocação, mas, passados quase 50 anos da Independência Nacional, é expectável que, cada vez mais, as narrativas institucionalizadas sejam revistas, discutidas e escrutinadas, em função da evolução teórica e metodológica que é um inevitável produto da evolução científica e intelectual de qualquer sociedade.
Ao conferir primazia à complexidade do fenómeno identitário cabo-verdiano em detrimento a uma abordagem normativa, sem fazer da sua leitura a abordagem correta, Brito-Semedo subscreve o entendimento do sociólogo alemão Niklas Luhmann que afirmou que a complexidade da sociedade reside, não menos, no facto de que muitas descrições dessa complexidade podem ser formuladas, e não apenas uma, como a correta.
Entendemos que o livro apresentado na semana passada na cidade da Praia é uma evidência das mudanças nas condições sociais e culturais de possibilidade da história das ideias e do pensamento cabo-verdiano. Certamente, à medida que o pluralismo se consolida na nossa vivência como norma, teremos novas oportunidades de pensar, de sentir e de operacionalizar Cabo Verde como uma «unidade na multiplicidade». Sempre que se tomar este pressuposto teórico como referência Cabo Verde, Ilhas Crioulas – Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade (Séc. XV-XIX) será um ponto de consulta necessário.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.