Tocou o sino para o recreio!

PorLígia Dias Fonseca,7 mar 2024 12:12

1. Dentro de dias toma posse o novo conselho de administração da RTC- Rádio Televisão de Cabo Verde. Um novo conselho é uma renovação da esperança de que a RTC possa projetar-se para frente em termos do serviço público que deve prestar e do produto que temos direito a ter numa democracia tão bem classificada como a nossa.

Em muitos setores da nossa organização social, política e económica conseguimos ver nitidamente a evolução dos mesmos e como o acesso a outros mercados, realidades e às novas tecnologias têm contribuído para melhorar a qualidade dos serviços e produtos oferecidos nesses setores.

Por exemplo, no setor da Justiça, vemos que Cabo Verde vai adotando as melhores práticas internacionalmente definidas para que se possa garantir o acesso ao direito e à justiça tal como se encontra consagrado na Constituição da República (CRCV). Há muito ainda por melhorar, claro. Mas as propostas estão aí e a discussão é permanente. Os profissionais da justiça (magistrados, advogados, oficiais de justiça) estão constantemente em formação e em consulta do que acontece nos sistemas jurídicos idênticos ao nosso e vão se aperfeiçoando. A própria dinâmica da Justiça impõe este permanente aperfeiçoamento. Cada advogado quer ser melhor que o colega. Tem o dever de ser melhor, de buscar novas soluções para contrapor. Este sistemático confronto de ideias é a vitamina que vai fortalecendo e melhorando a competência de cada um de nós.

Na comunicação social pública (RTC) parece que nada evolui na medida do que devia. Quem acompanha a RCV, e eu faço isso, diariamente, o nível de apresentação das notícias, dos debates e dos comentários dos jornalistas deixam-nos, muitas vezes, com uma sensação de angustiante insatisfação. O que devia ser informação objetiva e isenta não é mais do que opinião do jornalista acompanhada de factos descontextualizados de forma a melhor sustentar o seu próprio ponto de vista.

Nos debates, pouco há de debate, sendo sempre quase os mesmos que falam de tudo!

2. A profissão de jornalista é uma profissão muito exigente, pois o jornalista tem de estar muito bem preparado sobre a matéria que vai tratar para poder apresenta-la de uma forma sintética, em linguagem acessível a todos e com precisão técnica. Não é fácil. Parece-me, também, que um bom jornalista tem de ser uma pessoa que conhece o meio social onde a notícia se produz, que conhece o passado e que é dotado de cultura geral. Hoje não vivemos em mundos compartimentados. O que se passa em Cabo Verde passa-se em outras paragens ou é influenciado por outros países. Compreender os fenómenos objeto da notícia implica, por isso, não desconhecer o que se passa além-fronteiras e ter a perfeita noção do seu desenvolvimento a nível interno.

3. Quando nos sentamos em frente do ecrã de televisão e acedemos aos canais noticiosos portugueses, vemos como os factos noticiosos são cobertos do princípio ao fim. A notícia sobre uma conferência internacional, por exemplo, informa-nos sobre a sessão de abertura, mas no mesmo ou em outros momentos, vai-nos informando sobre o que de relevante aconteceu na conferência. São entrevistados os conferencistas e até se ouve a opinião de outras pessoas do público.

Entre nós, o único momento que é coberto pela televisão pública ou pela rádio é o momento da abertura. É constrangedor ver o batalhão de jornalistas dos diversos órgãos sociais a abandonar a sala após o momento da abertura. Não se interessam, nem querem saber o que se passa depois desse momento inicial formal e totalmente redutor.

Nesta semana verifiquei esta postura no Fórum “Organização, Funcionamento, Princípios e Boas Práticas dos Sistemas Prisionais de Cabo Verde e Portugal”, ocorrido nos dias 4 e 5 de Março, no Palácio do Governo. Após a Ministra fazer a abertura, os jornalistas saíram todos da sala. Fiquei eu a pensar: mas como vão cumprir o serviço público de informar os cidadãos sobre o que ocorreu nestes dois dias deste importante fórum, se estão todos de saída? Uma pessoa ao meu lado, notando o mesmo movimento, disse: tocou o sino para o recreio!

Igual comportamento ocorreu na conferência internacional sobre “Os desafios da regulação e promoção do pluralismo mediático” promovida pela Rede das Instâncias Africanas de Regulação da Comunicação Social (RIARC), nesta cidade da Praia.

O mais estranho, ainda, neste evento, foi que um dos momentos altos do mesmo era a conferência inaugural proferida pelo antigo Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca. Pois é, os nossos jornalistas da TCV, entenderam que este momento não tinha relevância jornalística e foram-se embora logo após o ato de abertura da conferência. Em Cabo Verde, um antigo Presidente da República fazer uma conferência, onde aborda o estado da liberdade de imprensa, a comunicação livre, as exigências de um debate público aberto, livre e equilibrado, o pluralismo, os desafios que a era digital em que vivemos coloca ao jornalismo, o próprio Estado de direito e a democracia, não constitui um ato com relevância suficiente para merecer ser noticiado no canal televisivo público, esse que deve prestar o serviço público de informar.

Esta situação torna-se mais caricata quando a comparamos com o que acontece noutros países, designadamente aqui ao lado no Senegal. Por exemplo, no mês de janeiro, o antigo PR Jorge Carlos Fonseca, proferiu uma conferência inaugural, na 50ª Conferência Internacional da Francofonia, evento aberto pelo Presidente da República Macky Sall, e a participação de Jorge Fonseca foi altamente divulgada pelos meios de comunicação social do Senegal e da dos outros países cujos jornalistas estiveram presentes, designadamente da Mauritânia e do Gabão. Durante a semana do evento, vários vídeos de canais televisivos africanos me chegaram às mãos, com a intervenção de Jorge Fonseca. Note-se que até na RCV se difundiu esta participação. Devemos concluir que uma intervenção de um antigo PR de Cabo Verde só é relevante quando é feita no exterior?

Foi pena que os jornalistas da nossa RTC não tenham feito a cobertura da intervenção do antigo PR. Teriam ouvido o mesmo chamar a atenção de que «num mundo cada vez mais dominado pela informação avulsa, ligeira e especuladora, a função do jornalista ganha contornos da de um médico num mundo totalmente dominado por paramédicos».

Ao novo conselho de administração da RTC deixo o meu apelo para que tenham a inteligência e a coragem de tomar as medidas que se mostrarem necessárias para que a TCV e a RCV prestem realmente um serviço público de informação. Como afirmou o Presidente Jorge Carlos Fonseca, na conferência inaugural «a liberdade de imprensa depende de fatores múltiplos dos quais cabe destacar a assunção por parte das instituições públicas do papel e funções que lhes cabem, as pressões e os condicionamentos exercidos pelo poder económico, a capacidade organizativa e profissional da classe, também o nível de preparação, de autonomia e de cultura de seus profissionais, a articulação com as diferentes instâncias da sociedade civil locais e internacionais e, sobretudo, as pressões políticas. Sem jornalistas livres não há imprensa livre, assim como não há democracia sem democratas

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,7 mar 2024 12:12

Editado porAndre Amaral  em  7 mar 2024 20:24

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