Whistleblowing (denúncia em português)

PorLuís Carlos Silva,15 abr 2024 8:50

​Nas complexas sociedades contemporâneas, as ações das instituições desempenham um papel crucial na determinação do rumo do país. Cada decisão tomada, cada medida implementada, carrega consigo um significado que transcende as paredes dos escritórios e ecoa nas vidas de cada cidadão. Neste contexto, é imperativo que as instituições exerçam seu poder com responsabilidade, sempre privilegiando ações que estimulem as melhores práticas e eliminem as más práticas.

Segundo a UNODC – Gabinete das Nações Unidas para o Combate à Droga e o Crime – Whistleblowing é “a atividade de uma pessoa, muitas vezes um funcionário, que denuncia informações sobre atividades dentro de uma organização privada ou pública que são consideradas ilegais, imorais, ilícitas, inseguras ou fraudulentas”.

Os denunciantes podem escolher os canais internos, quando houver e sejam seguros, ou as alegações ou as informações podem ser canalizados para entidades externas, como a comunicação social, o governo ou as autoridades policiais.

Como é óbvio, fazer uma denúncia, particularmente as que envolvam superiores hierárquicos, normalmente levantam questões que tenham a ver com a privacidade e a confidencialidade do denunciante, pelo que é de suma importância um quadro institucional que estimule a denúncia, mas que também proteja o denunciante. Não raras vezes, os denunciantes enfrentam retaliações, incluindo a possibilidade de demissão, aumento de horas de trabalho ou a sua redução injustificada, assédio moral ou intimidação, só para citar alguns exemplos.

Neste quadro, e ciente da importância vital que a denúncia pode ter no combate à corrupção, na detecção e prevenção de irregularidades, as Nações Unidas, através da sua Convenção contra a Corrupção, bem como a União Europeia, através da Diretiva 2013/36/UE, e as melhores práticas internacionais orientam-nos para a necessidade dos países legislarem no sentido de: reconhecer a legitimidade da figura de whistleblowing como um potente instrumento de controlo do risco; criação de canais seguros que permitam uma divulgação protegida e confidencial, caso assim for a vontade do denunciante; e criar mecanismos de proteção do denunciante, para o caso de eventuais perseguições, quer internos à organização como os de foro externos.

Seguindo essa orientação, Portugal, através da Lei n.º 93/2021, de 20 de Dezembro – Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações, no seu capítulo III – MEDIDAS DE PROTEÇÃO DOS DENUNCIANTES DE INFRAÇÕES - estabeleceu no número 1, do seu artigo 21, que: “É proibido praticar atos de retaliação contra o denunciante”.

Neste particular, Cabo Verde é referenciado pelo relatório da UNODC, “Proteção do Denunciante e a Denúncia à Corrupção nas ilhas do Pacífico” como um exemplo por já ter consagrado, na Lei, a figura do Whistleblower.

Portanto, independente da necessidade de se alargar o âmbito de aplicação do conceito, ela já é uma realidade em Cabo Verde, quer através da legislação interna do sistema financeiro, como através da Lei nº 81/IX/2020 – Regime Jurídico Aplicável à Comunicação de Irregularidades nas Instituições Financeiras – pelo que é expectável que todos os dirigentes públicos e políticos tenham a noção da importância da figura do denunciante e do potencial que encerra para expor irregularidades, ilegalidades e a corrupção, bem como funcionar como um inibidor de desvios às normas/à legislação.

Neste contexto, é com grande perplexidade que presenciamos a perseguição pública, institucional, bem como judicial de um “denunciante” que, perante factos que indiciam uma prática ilegal, cumpriu com o dever de denuncia e os fez chegar à “luz do dia” e ao conhecimento de todos, despoletando um intenso debate, que levou à suspensão da prática – confirmando, assim, pelo menos o potencial ilegal do ato.

A situação é de tal forma grave que chegamos ao ridículo do inquérito para apurar a identidade do denunciante tenha sido mais célere do que o inquérito para o apurar da veracidade da denúncia e da (i)legalidade do ato praticado. Com isso invertemos a pirâmide das prioridades e a da hierarquia das Leis.

Com esta inversão estamos a institucionalizar um quadro de intimidação da denúncia, fazendo projetar um ambiente fértil para a prática de irregularidades, ilegalidades e a indevida utilização dos recursos públicos, quando o caminho é precisamente o oposto.

Diante deste facto de claro atropelo àquilo que é a norma e as melhores práticas nos países mais desenvolvidos, no que diz respeito ao combate à corrupção e na promoção de mais transparência, Cabo Verde sairá, certamente, prejudicado nas próximas avaliações nesses índices.

Perante uma denúncia vinda de dentro de uma instituição, o instinto, quando se pretende a transparência e a boa utilização dos recursos públicos, não pode nunca ser a sindicância contra o denunciante, mas sim assumir a legitimidade da denúncia. É essencial compreender que o papel do denunciante é fundamental na salvaguarda dos princípios éticos e na manutenção da integridade das instituições.

No quadro em apreço, quando confrontados com a ausência de legislação ou de um quadro institucional que proteja o denunciante, a instituição em causa devia, conforme orientação internacional e da legislação Cabo Verdiana, primeiro reconhecer a legitimidade da denúncia e orientar a sua preocupação para a construção de um ambiente favorável à denúncia. Isso implica não apenas proteger a identidade do denunciante, mas também criar medidas eficazes para protegê-lo contra potenciais retaliações.

É crucial que as instituições compreendam que a denúncia é um instrumento valioso na promoção da accountability e no combate à corrupção. Portanto, em vez da tentativa de silenciar o denunciante, como verificado, devemos encorajar e proteger aqueles que têm a coragem de expor irregularidades e práticas inadequadas.

A verdadeira medida de uma sociedade democrática e transparente é a forma como trata os seus denunciantes. Cabo Verde tem a oportunidade de se posicionar como um exemplo de proteção dos denunciantes e de promoção da integridade institucional. É hora de agir em conformidade com os princípios fundamentais da democracia e do Estado de Direito, garantindo que a voz daqueles que buscam a verdade e a justiça seja ouvida e protegida.

Com a sindicância contra o denunciante, não nos resta outra conclusão que não a de que os prossecutores desta ação prestaram um mau serviço à nação, particularmente tendo em conta a responsabilidade que a instituição em causa tem, em matéria de proteção do Estado de Direito e da Constituição. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Luís Carlos Silva,15 abr 2024 8:50

Editado porSheilla Ribeiro  em  15 abr 2024 8:50

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.