O PONCHE: - Do melaço, da aguardente e de otras cositas mas

PorAntónio Ludgero Correia,22 abr 2024 9:03

"A maioria dos homens, quando pensa que está pensando, apenas está conseguindo reorganizar seus preconceitos. " Krute Rockne

O ponche é aquela bebida doce que os adolescentes do meu tempo visitavam, na antecâmara do grogue, do bagaço, do brandy e do scotch whisky. Agradável ao paladar, escorria com facilidade goela abaixo e conferia ao corpo um calorzinho reconfortante e, quiçá, viciante. Em doses atrevidas levava-nos àquele estado de euforia, mais comummente designado “sabete”. Diferente da euforia das demais bebidas espirituosas (a fusca), o “sabete” só tinha um senão: a terrível dor de cabeça do dia seguinte. Felizmente que tal cefaleia podia ser rapidamente ultrapassada por suculento ‘caldo-de-ovo’, se bem que num caso (sabete) como no outro (a fusca) o “kompu-kabesa” fosse mais garantido com recurso a uma boa dose do agente causador da cefaleia, que é como quem diz, mordedura de cão cura-se com os pelos do rabo do mesmo bicho.

Mas, o que vem a ser o ponche? Falando do ‘nosso’ ponche, do ponche crioulo cabo-verdiano, ele vem a ser uma bebida saborosíssima, obtida pela combinação de melaço de cana-de-açúcar, aguardente de cana, canela e limão, havendo quem agregue cravinho-da-Índia (por direito próprio ou em substituição da canela).

Muita gente considera, erroneamente, que o ‘nosso’ ponche é uma mera mistura de melaço e aguardente. Se é bem verdade que não há ponche sem melaço ou aguardente, não é menos verdadeiro que a uma tal mistura fica faltando o indispensável tempero para ser “o tal”. Falo da canela (ou cravinho) e do limão (que pode ser o limão da Guiné ou a lima da Pérsia, podendo ser também utilizado o limão siciliano). Isso sim, minha gente, é que é o néctar dos Deuses e que aprendi a confecionar com Nhâ Mariazinha, minha avó - que produzia para o tio Caetano e para mandar para os parentes ‘embarcados’ (que não se coibiam de encomendar tal néctar, em cada volta do correio).

Aqui chegados, somos convocados a chover no molhado, a cair na redundância, registando que o ponche não é nem MELAÇO, nem AGUARDENTE. Que é um novo ente, que é um novíssimo produto e que, por isso mesmo, foi batizado com um nome próprio, consensual qb.

Que não nos falte o melaço. Que nunca acabe o grogue. Que bendito seja o ponche nosso para os bons momentos, o nosso divino néctar. Mas, principalmente, que deixem que o ponche seja apenas… PONCHE - nem melaço, nem aguardente, nem limão, nem canela (ou cravinho). Já foi MELAÇO, mas já não é; já foi AGUARDENTE, mas já não é; a canela e o limão – conquanto sejam os componentes responsáveis pela transformação da mistura em néctar dos deuses e sejam sócios minoritários detentores de ‘golden share’ – também não conferem, por si sós, identidade ao produto. É o PONTXE, pá!

Escrever sobre o nosso pontxe, o néctar dos deuses crioulos, trouxe lembranças de uma saudável celeuma instalada a propósito da colocação de Manuel Brito-Semedo sobre a cultura cabo-verdiana. Saudável até à página 2, já que se escutaram diatribes para todos os gostos (e desgostos, também). Houve até um que sugeriu o enforcamento em cerimónia pública do nosso querido Brito-Semedo. Concorde-se ou não com as posições de alguém, não há espaço para a congeminação de um processo de eliminação física de quem pensa diferente. Nem pouco mais ou menos. Delito de opinião não tem lugar neste nosso Cabo Verde. Crioulo, africano ou europeu de segunda, não importa, o facto é que Brito-Semedo tem o direito de dizer o que lhe vai na alma. E é simples conviver com o diferente e com a diferença se se partir do princípio de que um indivíduo, mesmo que ele seja especialista, que emita uma opinião, por mais fundamentada que seja ou pareça, não é dono da verdade. Portanto, nem o Brito-Semedo nem os seus verdugos são senhores da verdade, conquanto estejam no direito de expressarem livremente o seu pensamento, ou as suas reflexões, onde, quando e pelas vias que escolherem.

Foi interessante escutar a colocação de Brito-Semedo e lembrar as incidências das relações comerciais, as exportações e as importações, de Cabo Verde. É que a leitura das estatísticas do comércio externo cabo-verdiano usa termos mui similares: estamos mais virados para o mercado europeu - de onde provém a grande maioria das nossas importações e para onde vai a quase totalidade das nossas exportações – sendo residuais as aquisições e as vendas em relação ao continente africano.

Delito de opinião não tem lugar neste nosso Cabo Verde. Crioulo, africano ou europeu de segunda, não importa, o facto é que Brito-Semedo tem o direito de dizer o que lhe vai na alma.

Mas não é o facto de se consumir mais azeite de oliveira do que o azeite de dendê, ou de haver maior volume de negócios com a Europa do que com a África, que faz com que um cabo-verdiano se sinta, culturalmente, mais europeu ou menos africano. Não creio que haja espaço para que aquele que se sente africano dos quatro costados equacione – nem em sonhos – a eliminação física daquele que se sente europeu e nem acredito que o “europeísta” terá a pretensão de se considerar superior ao “africanista”.

Estas ilhas que, no dizer de Adriano Moreira, estiveram desde a noite dos tempos à espera de poderem ser Portugal, nem por isso deixaram de dar o seu grito de liberdade, posicionando-se, desde muito cedo, pela autodeterminação e independência, recusando o estatuto de português de segunda e pondo em causa a legitimidade do dito Império Colonial Português, do Minho a Timor. E o dito retorno às raízes africanas, com o projeto de unidade Guiné-Cabo Verde e a adoção do “bubú” e da “súmbia”, não seduziu a grande Nação cabo-verdiana como se pretende.

Vivemos, hoje, em um país que tem o sonho de se tornar uma democracia perfeita e que vive muito bem com a democracia (com múltiplas imperfeições) que tem. E em um país com tal desiderato torna-se imprescindível que a cultura do respeito pela diferença e pelo diferente e uma solidariedade inesgotável em relação aos nossos contemporâneos faça escola.

Há mágoas do passado, há complexos múltiplos, há cicatrizes horripilantes, mas nós construímos, aqui neste Cabo Verde de esperança (como cantou Norberto Tavares) uma Nação de paz, esperança e concórdia, onde cada um vive a sua cabo-verdianidade de si manêra. Correndo o risco de ser proposto para a crucificação, creio que quem diz que temos uma cultura sui generis, nem africana, nem europeia; uma cultura crioula cabo-verdiana; um ponche exclusivo, em que pontificam, para além do melaço e da aguardente, a canela, o cravinho e o limão; não merece nem o ostracismo, nem, tampouco, um destaque especial.

E nem ‘os melaços’, nem ‘as aguardentes’ se devem sentir minimizados ou subalternizados. O processo que conduziu à emergência de um novo produto pode ter sido doloroso, mas há que deixar o passado no baú próprio. Que quem vive de passado é museu.

E que viva o pontxi kriolu kauberdiano! Forever…

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.

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Autoria:António Ludgero Correia,22 abr 2024 9:03

Editado porAndre Amaral  em  22 abr 2024 9:03

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