Alguns anos mais tarde, já em Portugal para onde a minha família teve de fugir na sequência da perseguição política movida pela FRELIMO a todos que ousassem pensar diferente, as comemorações do 25 de Abril traziam-me sempre um sentimento de incompreensão pelas contradições que continha. Como era possível aos dirigentes políticos portugueses, que tanto tinham sofrido a lutar contra a ditadura, assinassem acordos com partidos das antigas colónias que se pretendiam instalar como forças únicas dirigentes , negando ao povo toda e qualquer liberdade de manifestação de um pensamento diferente? Ano após ano, eu observava e vivia a democracia a se formar e consolidar em Portugal ao mesmo tempo que acompanhava a ditadura dos partidos únicos nos PALOPs. E revoltava-me ver como os presidentes desses países eram recebidos, abraçados e apoiados por Lisboa. Lembro-me de falar com o meu pai de que nada disso fazia sentido e que Moçambique só não caminhava para a democracia porque os países democráticos não se importavam de apoiar os ditadores e ignoram o sofrimento que estes causavam ao povo.
A ideia de que quando um povo alcança a liberdade e a democracia tem de se preocupar com todos os que não têm ainda acesso a esses bens essenciais para a dignidade da pessoa humana foi-se tornado cada vez mais forte e define-me como pessoa e mulher. Hoje, nas pequenas coisas, a maior alegria que sinto é quando as posso partilhar. Todos os direitos que nunca me foram negados por ser mulher, também os quero para as mulheres que me rodeiam, mas também para todas outras espalhadas pelo mundo. Por isso, se diariamente luto pela igualdade de direitos e oportunidades das mulheres em Cabo Verde, não deixo de acompanhar as lutas das mulheres no Irão. E sinto que temos o dever de agir sempre, porque há uma medida de ação para cada um e uma gota de água no oceano faz diferença.
Por estes tempos, onde parece que os direitos das mulheres e a sua vontade de os exercer livremente continuam a não ser compreendidos e se vê movimentos advogarem a sua compressão, somos confrontados com o processo legislativo em curso na Gâmbia para despenalizar a mutilação genital feminina. Uma comissão do parlamento da Gâmbia tem um prazo até meados de junho para fazer uma apreciação da proposta de despenalização e submeter a mesma à votação final.
Desde 2015 que a mutilação genital feminina passou a ser proibida na Gâmbia e a sua prática criminalmente sancionada. Este processo legislativo é agora um retrocesso inaceitável e que vai contra todos os documentos africanos de proteção dos direitos das mulheres e, também, contra a Agenda 2063 designada «A África que queremos».
Para além de já ter assinado uma petição que está a correr por todo o mundo apelando aos membros do parlamento da Gâmbia que parem essa decisão de despenalizar a MGF, resolvi escrever aos deputados nacionais de Cabo Verde que também fazem parte do parlamento da CEDEAO e do Parlamento PAN-Africano para que acionem os mecanismos necessários para esses parlamentos aprovarem recomendações no sentido da Gâmbia se abster de adotar medidas que permitam ou incentivem qualquer tipo de mutilação genital feminina.
Igualmente escrevi ao Presidente da República de Cabo Verde para que junto do seu homólogo da Gâmbia faça a sensibilização para a necessidade de cada um dos países africanos assumir e manter firmemente políticas públicas que protejam as meninas e mulheres de quaisquer atos que ofendam a sua saúde e bem-estar, designadamente proibindo a mutilação genital feminina.
Confio que estas minhas cartas sejam devidamente apreciadas e motivem os seus destinatários a agir dentro do âmbito das suas competências e da coragem que tiverem para quebrar barreiras para termos uma África onde as meninas e mulheres possam gozar de bem-estar, aceder à felicidade e contribuir para o desenvolvimento das suas comunidades.
Praia, 5 de Maio de 2024