O desafio…
O despovoamento de Santo Antão é, claramente, um dos maiores e mais urgentes desafios estruturais que a ilha enfrenta atualmente. Dados do Instituto Nacional das Estatísticas (INE) revelam que Santo Antão deverá perder quase 29% da população até 2040 (em relação a 2010). Na faixa etária entre os 25 e 34 anos – faixa crítica em que as pessoas tendem a decidir o lugar onde vão “construir a sua vida” – a projeção é ainda mais alarmante: redução de 37,5%. Os impactos desta tendência são altamente negativos a nível de “capital social” de Santo Antão, resultando num círculo vicioso em que a redução da população – especialmente na idade produtiva - leva a um crescimento económico abaixo do potencial da ilha que, por sua vez, gera menos empregos do que o necessário e “empurra” cada vez mais jovens para outras ilhas e/ou países à procura de melhores oportunidades, acelerando o processo de perda de população.
Desconhecem-se estudos aprofundados que tenham mapeado de forma científica as causas deste fenómeno e mensurado a contribuição de cada uma para a perda de população da ilha. No entanto, intui-se que uma das principais razões será a insuficiência de empregos estáveis, de qualidade, bem remunerados e mais alinhados com o perfil e as legítimas expectativas de uma população jovem cada vez mais qualificada, mais informada e aberta à mobilidade entre territórios . Porquanto o turismo tenha despontado na última década como um importante subsetor criador de empregos diretos e indiretos na ilha, estes tendem a ser maioritariamente empregos precários, não-formais (sem contrato fixo anual), sazonais (de outubro a abril), e insuficientes para absorver a população desempregada na ilha (estimada pelo INE em 1.184 em 2023) e subempregada (2.094). A título ilustrativo, dados do INE mostram que o total de pessoal a serviço de estabelecimentos hoteleiros em Santo Antão – subsegmento dentro do turismo que tende a oferecer empregos mais estáveis - ascendia a 361 em 2023, correspondendo a apenas 2,5% da população economicamente ativa da ilha.
A agricultura é o subsetor que mais emprega em Santo Antão. No entanto, esta contribui apenas para menos de 15% da Produto Interno Bruto (PIB) da ilha, não constituindo assim, na situação atual, uma solução estruturante e suficiente para a criação de todo o emprego que Santo Antão precisaria para conter ou reverter a perda da sua população. Esta limitada capacidade do subsetor agrícola em gerar empregos estáveis e de qualidade na ilha resulta não apenas da sua baixa produtividade e carácter essencialmente de subsistência (ao que se junta, mais recentemente, os efeitos das mudanças climáticas que já se fazem sentir na ilha…), mas também – e sobretudo? – da quarentena a que os produtos agrícolas de Santo Antão têm sido sujeitos desde 1984, que impede que sejam explorados mercados de maior valor em termos de receita potencial. Decorridos já 40 anos da quarentena, nunca foi mensurado cientificamente o impacto desta medida de política sobre a economia de Santo Antão e, subsequentemente, analisada a sua possível contribuição para a perda de população que a ilha vem sofrendo. Nem tampouco foi implementado pelos sucessivos governos quaisquer mecanismos visando especifica e explicitamente a compensação dos agricultores de Santo Antão pelos enormes custos desta medida de política tomada para proteger os agricultores de outras ilhas, o que é absolutamente injusto do ponto de vista económico e social.
Desenhar e implementar políticas eficazes para promover urgentemente a criação de empregos estáveis, de qualidade e bem remunerados em Santo Antão, em quantidade suficiente e capaz de satisfazer as necessidades e legítimas expectativas de uma camada jovem cada vez mais qualificada deveria ser, assim, o principal objetivo de quaisquer governos (central e municipais). Só assim será possível estancar, ou mesmo reverter, a preocupante perda da população da ilha. Este artigo pretende dar um modesto contributo cidadão para este desiderato, apontando um caminho que poderá ser explorado para o efeito, em complemento, naturalmente, com outras medidas de política que podem (e devem) ser adotadas para o efeito.
A proposta…
Assim, considerando-se (i) a estrutura económica e social da ilha de Santo Antão, (ii) o potencial da ilha em subsetores como a agricultura e a transformação agroindustrial, (iii) a necessidade de criação urgente de empregos apropriados na ilha como forma de abrandar ou até reverter a redução da sua população, (iv) a necessidade de corrigir uma injustiça histórica em termos de compensação dos agricultores de Santo Antão pelos custos incorridos pela quarentena imposta pelo Governo para proteger os agricultores das outras ilhas, e (v) o quadro legal-institucional existente, propõe-se o desenho e implementação de uma Zona Económica Especial Agroindustrial de Santo Antão (uma “Food Processing Zone”), nos arredores da Cidade de Porto Novo por razões de disponibilidade de terrenos e localização. A ZEEASA teria os seguintes objetivos estratégicos:
1) Atrair investimento privado para o subsetor de transformação agroindustrial e, consequentemente, alavancar a inovação, modernização e melhoria da organização do subsetor de produção agrícola a montante;
2) Oferecer uma resposta alternativa à problemática de contenção da praga dos mil-pés ( Spinotarsus cabo-verdus), através de uma estratégia de transformar e acrescentar valor aos produtos agrícolas da ilha, em vez de apenas impor uma quarentena aos mesmos;
3) Promover a criação de empregos estáveis e de qualidade na ilha, não apenas no subsetor agroindustrial, mas também, por arrastamento, nos subsetores agropecuária e das pescas.
A ZEEASA seria dotada de um quadro legal próprio, uma estrutura simplificada de governança e gestão com a participação das três Câmaras Municipais da ilha, e um sistema de incentivos que, para além dos incentivos já previstos na legislação existente para Zonas Económicas Especiais e outros institutos como os de Centros Internacionais de Negócio e Convenções de Estabelecimento, incluiria também um quadro de incentivos adicionais especiais a serem disponibilizados aos investidores e empresas na ZEEASA, financiados por um Fundo de Compensação para a Agricultura em Santo Antão (FUCASA) a ser desenhado e implementado para o efeito. Além dos incentivos já disponíveis (isenções fiscais em sede do Imposto sobre Rendimento de Pessoas Coletivas (IRPC) e Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA), isenções aduaneiras na importação de equipamentos e matérias-primas, entre outros), propõe-se acrescentar os seguintes: i) isenção de taxa de concessão de terrenos na ZEEASA para instalação de unidades industriais voltadas para a transformação agro-industrial; (ii) subsídio de 75%-100% das despesas com eletricidade e água na ZEEASA; (iii) reembolso de 100% das despesas com formação de pessoal, incorridas pelas empresas instaladas na ZEEASA; (iv) condições preferenciais de acesso a financiamento no quadro dos mecanismos previstos no ecossistema de financiamento (ProEmpresa, ProCapital, ProGarante e Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado). Os custos para o Estado com os incentivos i) e iii) poderiam ser financiados com recursos do FUCASA, enquanto que para o incentivo ii), um projeto paralelo/complementar na área de energia renovável pode ser desenhado para o efeito, podendo ser, por exemplo, o Estado financiar a expansão do parque de energia eólica já existente em Santo Antão (e concessionar depois a sua exploração), em contrapartida à disponibilização gratuita de energia à ZEEASA. Os recursos para o FUCASA poderiam vir do Orçamento Geral do Estado (no quadro de uma política de compensação dos agricultores de Santo Antão), mais especificamente, da consignação de uma percentagem das receitas aduaneiras relacionadas com a importação de produtos agrícolas e agrícolas transformados e das receitas com IRPC de empresas agrícolas e agroindustriais localizadas nas outras ilhas que não Santo Antão.
O roteiro indicativo de implementação…
Para a implementação da ZEEASA, propõe-se o seguinte roteiro:
1) Reservar um espaço na zona industrial de Porto Novo, com uma área mínima indicativa de 100 hectares devidamente equipada com um Plano Detalhado (PD), que pode ir sendo infraestruturado gradualmente ao longo de uma década (ex: 10 hectares por ano, a um custo indicativo estimado em 200 mil contos/ano), conforme a evolução das necessidades.
2) Realizar estudos mais detalhados (incluindo sobre o impacto económico e social da quarentena na ilha de Santo Antão), elaborar um plano de negócios para a ZEEASA e desenhar/fazer aprovar em sede própria os instrumentos de enquadramento e governança da mesma.
3) Desenhar/fazer aprovar os instrumentos de governação e financiamento do FUCASA.
4) Instituir e operacionalizar as estruturas de gestão da ZEEASA e do FUCASA.
5) Elaborar e implementar um plano de comunicação/divulgação da ZEEASA entre operadores económicos, empresas e investidores (nacionais e estrangeiros), visando atrair empresas para a ZEEASA.
Estima-se grosseiramente que a ZEEASA poderia contribuir para a criação de entre 5.000 a 10.000 empregos diretos e indiretos ao longo das cadeias de valor da agricultura e pecuária em Santo Antão numa década. No entanto, análises mais detalhadas serão necessárias, no quadro da elaboração dos necessários estudos de viabilidade e plano de negócios da ZEEASA.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1178 de 26 de Junho de 2024.