Neste ponto, é mais uma imposição para proteger a agricultura de outras ilhas – pagando-se pelo serviço de expurgos imposto como obrigatoriedade a quem quer exportar para as ilhas do Sal e da Boavista -, do que efetivamente uma medida eficiente, sustentável e economicamente justa para lidar com os problemas dos mil-pés (Spinotarsus cabo-verdus) e do escoamento limitado de produtos agrícolas para mercados de maior potencial. Sugerir que o Centro de Expurgos de Porto Novo tem vindo a ser, ou é, solução para o problema de escoamento de produtos agrícolas da ilha, ou é por desconhecimento dos dados (ou insuficiência na análise dos mesmos), ou, em os conhecendo, revelaria alguma má-fé ao se querer induzir as pessoas a tal conclusão. Vamos aos factos.
O Centro de Expurgos de Porto Novo (CEPN), inaugurado em 2010, mas com operações iniciadas em 2013, representou um investimento de 120 mil contos (fonte: jornal A Nação online, 16/03/2022). Dados divulgados recentemente pelo Ministério da Agricultura e Ambiente dão-nos conta que desde o início das suas operações em 2013 e até junho de 2024 o Centro de Expurgos tratou um total de 918 toneladas de produtos agrícolas que foram destinados sobretudo às ilhas do Sal e da Boavista (Inforpress, 13/07/2024); que nos primeiros 06 meses do corrente ano o centro já processou 57 toneladas de produtos (Inforpress, 13/07/2024); e que em 2023 apenas, o centro processou 118 toneladas de produtos (Inforpress, 01/03/2024). Um novo Centro de Expurgos que deverá custar 80 mil contos está a ser construído, desta vez, no perímetro do cais de Porto Novo e, segundo o Ministério da Agricultura, “deverá resolver o problema do embargo aos produtos agrícolas da ilha” (A Nação online, 15/07/2024).
Vamos às análises. Primeiro, comparando-se o investimento inicial no centro existente (120 mil contos) com o total de produtos processados até agora (918 toneladas em cerca de 10,5 anos de operações, representando uma média de 87 toneladas por ano), conclui-se que os custos com amortização do investimento, calculados com base nas normas contabilísticas aplicáveis, têm sido de quase 70 contos por tonelada de produto agrícola processado. De referir que este montante não inclui as despesas de funcionamento, que se sabe serem substanciais devido aos elevados encargos com eletricidade para o funcionamento das câmaras de frio.
Segundo, mesmo assumindo-se como padrão o “bom ano” de 2023 (com 118 toneladas de produtos tratados), este representa apenas 5% da produção anual de produtos hortícolas em Santo Antão (estimada em cerca de 2.350 toneladas - excluindo-se cana-de-açúcar1). Portanto, os restantes 95%, ou são comercializados apenas em São Vicente (concorrendo aqui ainda com produtos vindos de outras ilhas e importados), ou canalisados para o autoconsumo (estimados 24%, segundo o RGA 2015), ou são perdidos por falta de escoamento. Estes números, por si só, deitam por terra o argumento de que um centro de expurgos – seja o antigo, seja o novo em construção – “resolve o problema do embargo aos produtos agrícolas de Santo Antão”, como afirma o Governo.
Terceiro, o total de produtos processados no Centro, destinados às ilhas do Sal e da Boavista (assumindo-se como referência as 118 toneladas registadas no “bom ano” de 2023), representa menos de 3% (três por cento!) do total de hortaliças e legumes frescos importados anualmente de outros países por estas duas ilhas (fonte: Relatório de Atividades do Serviço de Inspeção Sanitária do Ministério da Agricultura e Ambiente, referente a 2019 – neste ano, estas ilhas terão importado 4.072 toneladas de hortaliças e legumes frescos2), e menos de 1% (um por cento!) das quase 14.000 toneladas de produtos hortícolas importados por Cabo Verde em 2023 (fonte: Direção Geral das Alfândegas).
Uma leitura combinada das três análises acima permite concluir facilmente que: (i) existe um mercado potencial de produtos hortícolas significativo em Cabo Verde que, por insuficiência de oferta local, vem sendo preenchido pela importação (estimada em 14.000 toneladas/ano em todo o país, e em mais de 4.000 toneladas/ano apenas nas ilhas do Sal e da Boavista ); (ii) Santo Antão possui um potencial natural considerável para satisfazer pelo menos uma parte desta procura – a ilha tem capacidade para até duplicar a sua produção hortícola para mais de 5.000 toneladas/ano, com uma combinação de expansão da área de terrenos de regadio, reconversão de parte do cultivo de cana-sacarina para produtos hortícolas, e melhorias nos sistemas de produção; (iii) contudo, os agricultores de Santo Antão não vêm tendo acesso a este mercado, principalmente por causa da quarentena imposta à ilha; e (iv) as respostas dos sucessivos governos para “resolver o problema” – em especial os centros de expurgo, supostamente para contornar os efeitos da quarentena – têm sido insuficientes, ineficientes, ineficazes, insustentáveis, e de impacto muitíssimo limitado.
Desconhece-se se, para a decisão de investir mais 80 mil contos num novo centro de expurgos, se terá tido o cuidado de realizar antes uma avaliação dos resultados e impacto do antigo centro, com base em metodologia e critérios apropriados para a avaliação de políticas públicas. Assumir que o problema é(ra) apenas de localização do centro de expurgos é um erro de diagnóstico e de formulação de políticas públicas, custoso ao erário público, como já foi demonstrado acima. E afirmar que o novo centro irá resolver o problema de deficiente escoamento de produtos agrícolas da ilha devido à quarentena imposta é outro erro ainda maior, que só contribui para a inação e o adiamento da implementação de políticas mais estruturais, mais assertivas e mais eficientes para o desenvolvimento sustentável de Santo Antão.
Faria melhor o Governo se assumisse, com humildade, que os centros de expurgo não são as soluções estruturais que a ilha precisa, e promovesse então um amplo debate, honesto, inclusivo, baseado em evidências e envolvendo toda a sociedade civil e outros atores relevantes, para refletirmos todos – e agirmos, com a urgência que o quadro requer! – sobre as causas do acelerado despovoamento da ilha, em andamento. A proposta da Zona Económica Especial Agroindustrial de Santo Antão (ZEEASA), apresentada por este escriba na Edição nº 1178 do jornal Expresso das Ilhas de 26/06/2024, não sendo, naturalmente perfeita e podendo ser refinada, pode servir como um dos fios-condutores para esta reflexão. Os 200 mil contos já investidos nos centros de expurgos em Santo Antão (120 mil contos no antigo + 80 mil contos no novo), poderiam ter sido mais bem investidos neste conceito de Zona Agroindustrial, podendo então o centro de expurgo ser reposicionado para ser uma unidade de prestação de serviços (de armazenagem, logística de frio, certificação fitossanitária e outros) às empresas que estivessem instaladas na ZEEASA.
Parafraseando o Poeta, “o povo de Santo Antão quer um poema diferente para o povo de Santo Antão”!
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1 A produção anual de produtos hortícolas em Santo Antão foi estimada pelo autor, com a ajuda de um Engenheiro Agrónomo especialista, considerando a área total de regadio da ilha (1266,4 hectares, segundo o Recenseamento Geral Agrícola de 2015), excluindo-se a área total usada no cultivo de cana-de-açúcar (1.034 hectares), e assumindo-se uma produtividade média de produtos hortícolas, muito conservadora, de 10 toneladas por hectare.
2 De notar que não estão incluídos aqui os produtos fornecidos às ilhas do Sal e da Boavista por outras ilhas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.