Entre 1856 e 1975, diferentes gerações da elite intelectual cabo-verdiana contribuíram para essa construção, identificando três etapas distintas: o sentimento nativista (1856-1932), a consciência regionalista (1932-1958) e a afirmação nacionalista (1958-1975).
Sentimento Nativista (1856-1932)
O sentimento nativista surgiu como resposta à hostilidade dos colonizadores, baseado nas ideias do pan-africanismo e na defesa da autonomia cultural e política. Factores como a recusa do regime de adjacência, a proposta de venda de colónias para pagar dívidas de Portugal, e crises de fome e miséria fortaleceram esse sentimento. As elites letradas começaram a articular um discurso de resistência cultural e política. Publicações periódicas como “A Voz de Cabo Verde” (Praia, 1911-1919) e “O Independente” (Praia, 1912-1913) foram fundamentais para a disseminação dessas ideias. Nesse contexto, a elite intelectual começou a construir uma narrativa de identidade crioula distinta da metropolitana, valorizando elementos culturais locais como a língua crioula, a música e as tradições populares.
O surgimento de figuras como José Evaristo d’Almeida (O Escravo, 1856), um dos primeiros a reivindicar uma identidade cultural específica para Cabo Verde, foi crucial nesse período. Ele e outros intelectuais começaram a desafiar a visão dominante de que a cultura cabo-verdiana era apenas uma extensão da cultura portuguesa, defendendo a ideia de que Cabo Verde possuía uma cultura única resultante da mistura de influências africanas e europeias. Além de José Evaristo d’Almeida (Portugal, 1810 – Guiné Portuguesa, 1856), outras figuras notáveis emergiram nesse contexto, como Eugénio Tavares (Brava, 1867 – 1930), cujos escritos poéticos exaltavam a cultura crioula e enfatizavam a importância de valorizar as tradições locais. Sua obra literária é um exemplo claro de como a literatura serviu como um veículo para a expressão da identidade cabo-verdiana.
Consciência Regionalista (1932-1958)
Nos anos 1930, a crise económica mundial e a negligência colonial agravaram a situação em Cabo Verde, levando a elite intelectual a defender a identidade regional dentro do império português. O poema “Sanvcênte já Cabá na Nada” de Sérgio Frusoni (São Vicente, 1901 – 1975) exemplifica a miséria da época. A “Revolta de Nhô Ambrose” em 1934 e a fundação do jornal “Notícias de Cabo Verde” em 1932 são marcos dessa fase. Durante este período, a elite intelectual de Cabo Verde começou a definir uma identidade regional que, embora ainda inserida no contexto colonial, reivindicava especificidades culturais e sociais próprias. O regionalismo defendia a autonomia administrativa e cultural de Cabo Verde enquanto criticava a exploração e negligência da metrópole.
A década de 1930 também viu o aumento da consciência política e social entre a população cabo-verdiana. A crise económica e as condições de vida cada vez mais difíceis levaram a um aumento das tensões sociais e políticas. A elite intelectual, através de jornais e revistas, começou a articular demandas por reformas e maior autonomia. Publicações como “Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro” (Lisboa, 1851-1932) e “Revista de Cabo Verde” (São Vicente, 1899) tornaram-se plataformas importantes para a expressão dessas ideias. Um dos marcos importantes dessa fase foi a publicação do jornal “Notícias de Cabo Verde” (São Vicente, 1931-1962), que se tornou um veículo essencial para a disseminação das ideias regionalistas e para a promoção de debates sobre a situação económica e social das ilhas. O jornal ajudou a consolidar uma consciência regional que valorizava a especificidade cultural e histórica de Cabo Verde dentro do contexto colonial.
Afirmação Nacionalista (1958-1975)
Nos anos 1950 e 1960, a identidade nacional cabo-verdiana começou a se afirmar mais fortemente através do fortalecimento cultural e social. Movimentos culturais e literários desempenharam papéis centrais na definição e consolidação dessa identidade. A “Nova Largada” (Praia, 1958), uma geração de intelectuais influenciados pela Casa de Estudantes do Império, procurou integrar os problemas de Cabo Verde na problemática africana, promovendo a cultura cabo-verdiana e reforçando a identidade crioula. Durante este período, a identidade cabo-verdiana foi afirmada através de diversos meios culturais. Músicos, escritores e artistas plásticos desempenharam papéis cruciais na construção e disseminação de uma identidade nacional. A música, especialmente através de géneros como a morna e a coladeira, tornou-se uma forma importante de expressão cultural. Artistas como B. Léza (São Vicente, 1905 – 1958) e Manuel d’Novas (Santo Antão, 1938 – 2009) ajudaram a popularizar a música cabo-verdiana tanto dentro como fora do país, fortalecendo a identidade nacional e cultural.
A “Nova Largada” representou uma nova fase na afirmação da identidade cabo-verdiana, onde a literatura, a música e outras formas de expressão cultural foram utilizadas para promover um sentimento de unidade e orgulho nacional. Através de suas obras, os intelectuais dessa geração buscaram conectar a identidade cabo-verdiana com a luta mais ampla pela independência e autodeterminação em toda a África.
A Revista Claridade e a Identidade Cultural
A revista “Claridade” (São Vicente, 1936-1960) desempenhou um papel crucial na expressão literária e cultural da identidade cabo-verdiana, destacando-se por seus estudos etnográficos e sociológicos. Este movimento literário buscou reflectir a realidade cabo-verdiana, suas dificuldades e a necessidade de uma identidade própria, distinta da metrópole. Os colaboradores da “Claridade”, como Baltasar Lopes da Silva (São Nicolau, 1907 – 1989), Manuel Lopes (São Nicolau, 1907 – 2005) e Jorge Barbosa (Praia, 1902 – 1971), exploraram temas como a seca, a fome e a emigração, promovendo uma literatura que refletia as aspirações e desafios do povo cabo-verdiano. A “Claridade” representou uma ruptura com a literatura anterior, que muitas vezes idealizava a realidade colonial, e buscou um novo realismo que reconhecia e valorizava a cultura crioula e as experiências quotidianas do povo de Cabo Verde.
A “Claridade” não só promoveu uma nova forma de literatura, mas também influenciou outras áreas da cultura cabo-verdiana. O movimento claridoso inspirou músicos, artistas e outros escritores a explorar e celebrar a cultura crioula. A revista foi uma plataforma para debates sobre a identidade cabo-verdiana e o papel da cultura na luta contra o colonialismo. Através de seus artigos e ensaios, a “Claridade” ajudou a consolidar uma consciência nacional que transcendeu as ilhas e uniu os cabo-verdianos em torno de uma identidade comum.
Baltasar Lopes da Silva, um dos fundadores da “Claridade”, desempenhou um papel fundamental na consolidação da identidade cultural cabo-verdiana. Seu romance “Chiquinho” (São Vicente, 1947) é considerado uma obra-prima da literatura cabo-verdiana, retratando a vida nas ilhas de forma realista e sensível, e enfatizando a importância da solidariedade e da luta contra as adversidades.
A Importância da Cultura na Identidade Nacional
A cultura desempenhou um papel central na construção da identidade nacional cabo-verdiana. Músicos como B. Léza e Manel d’Novas popularizaram a morna e a coladeira, géneros musicais que expressavam as alegrias e tristezas do povo cabo-verdiano. A música tornou-se uma forma de resistência cultural, afirmando a identidade cabo-verdiana e fortalecendo o espírito de unidade.
Além da música, a literatura, o teatro e as artes visuais também contribuíram para a formação da identidade nacional. Peças de teatro como “Chiquinho” (1947) de Baltasar Lopes da Silva e “Flagelados do Vento Leste” (1960) de Manuel Lopes exploraram temas sociais e políticos, oferecendo uma crítica contundente ao colonialismo e à situação em Cabo Verde. As artes visuais, através de artistas como Manuel Figueira e Luísa Queirós, retrataram a vida quotidiana e as paisagens de Cabo Verde, celebrando a beleza e a resiliência do povo cabo-verdiano.
Os festivais culturais e eventos comunitários também desempenharam um papel importante na consolidação da nossa identidade. Festas tradicionais como o carnaval e as festas de São João tornaram-se momentos de celebração da cultura cabo-verdiana, promovendo a unidade e o orgulho entre a população. Esses eventos proporcionavam uma oportunidade para a expressão das tradições e valores locais, fortalecendo os laços comunitários e a identidade coletiva.
A Influência da Língua Crioula
A língua crioula foi um elemento fundamental na construção da identidade nacional cabo-verdiana. Embora o português fosse a língua oficial, o crioulo era a língua do quotidiano, falada pela maioria da população. A valorização e o uso do crioulo na literatura, na música e em outras formas de expressão cultural ajudaram a reforçar a identidade crioula e a promover um senso de pertença e orgulho entre os cabo-verdianos.
Escritores e poetas como Luís Romano (Santo Antão, 1922 – 2010) e Ovídio Martins (São Vicente, 1928 – 1999) usaram o crioulo em suas obras para expressar as experiências e as aspirações do povo cabo-verdiano. Através da literatura em crioulo, esses autores puderam capturar a essência da vida nas ilhas, celebrando a cultura local e criticando as injustiças sociais e políticas. A promoção do crioulo como uma língua literária e cultural foi um passo importante na afirmação da identidade nacional cabo-verdiana.
Educação e Conscientização Política
A educação e a conscientização política também desempenharam um papel crucial na construção da identidade nacional cabo-verdiana. Através da educação, as gerações mais jovens foram expostas às ideias de autonomia e identidade cultural, aprendendo sobre a história e as tradições de Cabo Verde.
A Casa dos Estudantes do Império em Lisboa foi um ponto de encontro para estudantes africanos, incluindo cabo-verdianos, onde puderam discutir questões políticas e culturais e articular uma visão para a independência e o desenvolvimento de suas nações. Esse ambiente de troca de ideias e experiências foi fundamental para a formação de uma consciência política e cultural entre os jovens intelectuais cabo-verdianos.
Em suma, A construção da identidade nacional cabo-verdiana foi um processo complexo e multifacetado que envolveu a articulação de uma consciência cultural e política ao longo de mais de um século. Desde o sentimento nativista do século XIX até a afirmação nacionalista que culminou na independência em 1975, a elite intelectual, os artistas e o povo cabo-verdiano trabalharam juntos para definir e afirmar uma identidade que reflectisse suas experiências, aspirações e desafios. A cultura, em todas as suas formas, desempenhou um papel central nesse processo, servindo tanto como meio de resistência quanto de afirmação da identidade nacional.
A independência de Cabo Verde, alcançada em 5 de julho de 1975, foi o culminar de décadas de luta e resistência. A nova nação enfrentaria muitos desafios, mas a identidade nacional construída ao longo de anos de luta e sacrifício forneceu uma base sólida para a construção de um futuro melhor para todos os cabo-verdianos. A história da construção da identidade nacional cabo-verdiana é um testemunho da resiliência e criatividade de um povo que, apesar das adversidades, conseguiu afirmar sua identidade e conquistar sua liberdade.
Este processo de construção da identidade nacional não termina com a independência. Ele continua a evoluir à medida que Cabo Verde enfrenta novos desafios e oportunidades no cenário global. A identidade cabo-verdiana, enraizada em uma rica herança cultural e histórica, permanece um elemento central na vida dos cabo-verdianos, inspirando um sentimento de orgulho e unidade nacional.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.