Nações Unidas: o multilateralismo «que precisamos», para «o futuro que queremos»

PorJosé Luís Rocha,14 out 2024 7:56

Embaixador de carreira, foi Representante Permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas em New York, de 2016 a 2021.
Embaixador de carreira, foi Representante Permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas em New York, de 2016 a 2021.

​O Debate geral da septuagésima nona sessão (UNGA 79), entre os dias 24 e 30 de setembro de 2024, viu desfilar Delegações conduzidas por 72 Chefes de Estado, 7 Vice-Presidentes ou equiparados, 15 Primeiros Ministros e ou Chefes de Governo, 82 Ministros de Negócios Estrangeiros e, últimos a discursar, 6 Representantes Permanentes.

Os países de língua portuguesa, na sua maioria, utilizaram o Português nas suas intervenções que, como se sabe, não é língua oficial das Nações Unidas, retomando a ideia de que algum dia possa vir a sê-lo, embora a caminhada para lá se chegar tenha que ultrapassar obstáculos geopolíticos, legais (revisão da Carta) e financeiros. Até lá, o uso do português reforça o multilinguismo no seio da ONU, como uma das línguas de comunicação da Organização.

A UNGA 79 reuniu-se sob o tema proposto pelo Presidente eleito da Assembleia geral e antigo Primeiro ministro dos Camarões, Philemon Yang («não deixar ninguém para trás: agindo juntos para o avanço da paz, do desenvolvimento sustentável e da dignidade humana para as gerações presentes e futuras»), muito próximo da temática da Cimeira do Futuro que aprovou o «Pacto para o Futuro», tal qual adotado pela primeira Resolução da UNGA 79 (A/RES/79/1).

Neste artigo gostaria de me concentrar no multilateralismo, uma questão amplamente debatida, porque enquadra o modus operando e determina a funcionalidade útil das Nações Unidas, tendo como resultado as soluções encontradas ou os impasses criados.

Uma questão, objeto de apreciação diferente entre as pequenas Nações, que a praticam como uma necessidade para serem ouvidas e as Nações maiores que a utilizam consoante os seus interesses.

Uma questão fundamental da Carta das Nações Unidas, que define a essência do multilateralismo ao fazer da Organização (Artigo 1.4) «o centro para a harmonização das ações das nações na realização dos seus objetivos» comuns. A Carta que foi objeto de uma nova assinatura simbólica por ocasião dos 75 anos da ONU em 2020, através da qual os 193 Estados membros, em comparação com os 51 signatários de 1945, renovaram o seu credo no multilateralismo.

Uma questão, enfim, mencionada por quase todos os intervenientes na UNGA 79, algumas vezes para além do diplomaticamente correto, na tentativa de responsabilizar a Organização, quando se sabe que o multilateralismo diz respeito ao processo intergovernamental, no qual os Estados membros, divididos politica e ideologicamente, face à complexidade e à multiplicidade de questões e interesses, escusam-se a aplicar os valores e princípios da Carta, incapacitando a instituição de fazer o seu trabalho.

A UNGA 79 ficou marcada por uma elevada crispação com base nos «conflitos maiores» em curso na Europa e no Médio oriente, e que continuam a evoluir, no sentido de escalada e de risco de guerra total. Tais conflitos, é um facto, carecem de soluções geopolíticas equilibradas, incluindo a solução de dois Estados na questão Palestina e soluções regalianas sustentáveis para o caso do Líbano. A atenção dedicada aos «conflitos maiores», porém, não só relegou para a condição de «conflitos menores» os restantes, principalmente em Africa, como remeteu para o segundo plano as deliberações em torno dos cinco objetivos do Pacto para o Futuro.

Refletindo sobre o desafio maior de cada objetivo do Pacto para o Futuro, o professor Jeffrey D. Sachs (Universidade de Columbia nos EUA e Conselheiro ODS do SG da ONU), considerou: «o financiamento global para a realização dos investimentos públicos; a competição entre grandes potências que deve passar a ser governada e restringida pela Carta da ONU; a garantia de uma governança transparente e responsável das tecnologias avançadas; a garantia de que cada criança possa atingir seu potencial por meio de uma educação de alta qualidade; e a reforma o sistema da ONU, para dar mais poder às instituições e torná-las mais representativas do mundo de hoje».

O Secretario Geral Guterres na sua comunicação ao Debate geral, afirmou não ter «ilusões sobre os obstáculos à reforma do sistema multilateral. Aqueles com poder político e económico – e aqueles que acreditam ter poder – estão sempre relutantes em mudar. O status quo já está drenando esses poderes. Sem reforma, a fragmentação é inevitável, e as instituições globais se tornarão menos legítimas, menos confiáveis e menos eficazes».

O sistema multilateral deve ajustar-se à evolução do Mundo e a sua reforma deve ser, por conseguinte, holística para abranger todos os pilares das Nações Unidas, incluindo o desenvolvimento sustentável, a arquitetura financeira internacional, os direitos humanos e a gestão da paz pelo Conselho de Segurança. Nota-se que tem havido progressos, embora desiguais, em todos os pilares, à exceção do impasse que persiste há mais de trinta anos na reforma do Conselho de segurança para, nomeadamente, alargar o numero de membros permanentes e não permanentes, introduzir maior equilíbrio na representação regional e encontrar-se uma solução satisfatória à extensão do direito ao veto aos novos permanentes, assim como à utilização menos paralisante do uso do veto.

No que tange à Africa – a única região que não dispõe de membro permanente no Conselho de segurança – a ideia tem granjeado o apoio de uma maioria favorável nas Nações Unidas, em sintonia com o «consenso (africano) de Ezulwini» de 2005, para que o continente africano possa vir a ser contemplado com, pelo menos, dois membros permanentes e cinco não permanentes. Contudo, segundo a regra de que nada está acordado, enquanto tudo não tiver sido acordado, dificilmente se poderá avançar com uma reforma parcial que contemple apenas o caso africano. Será necessário, porém, tirar a reforma do impasse em que se encontra e, para isso, a negociação intergovernamental em causa deverá recorrer a um texto de base, como ponto de partida e que possa incluir os ensinamentos acumulados ao longo de todos estes anos passados. Vários dos grupos constituídos vêm defendendo e insistindo nessa via.

O Multilateralismo é parte integrante e central da Politica externa de Cabo Verde, se atendermos à nossa Constituição, aos Programas de Governo sucessivos, à nossa adesão, participação e diplomacia nos fóruns globais, regionais e inter-regionais. Nesse âmbito, a nossa condição de SIDS acolhe, como justa, a proposta de reserva de um lugar não permanente no Conselho de segurança aos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento.

Em suma, temos no Multilateralismo, uma filosofia, uma política, uma prática de «juntamon» ao serviço da governança mundial, para enfrentar desafios, resolver problemas e permitir que a humanidade avance, como tem avançado e, para que avance mais ainda, encorajar a inclusão e a solução de antigos e novos desafios, por resolver.

Graças ao multilateralismo, se olharmos retrospetivamente para a ONU, que completará 80 anos em 2025, estaremos autorizados a concordar com quem disse que «o Mundo está bem melhor com as Nações Unidas e certamente que seria bem diferente sem as Nações Unidas». 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.

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Autoria:José Luís Rocha,14 out 2024 7:56

Editado porAndre Amaral  em  14 out 2024 7:56

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