A violência verbal, a agressividade no tom do discurso, a defesa da honra com ofensa maior como direito, porque lá diz o ditado popular “quem não se sente não é filho de boa gente”, é uma postura que nos é apresentada diariamente, basta, por exemplo, ouvir as sessões parlamentares transmitidas na rádio. Um dia destes, ao ouvir uma declaração política, a primeira intervenção nessa sessão, não pude deixar de me interrogar: como pode esta voz ser tão agressiva logo de manhã? Porquê, estragar a sua bela voz e uma capacidade maravilhosa de se expressar quer em português quer em crioulo, muitas vezes entrelaçando um e outro de forma totalmente encantadora, com um tom estridente e de combate? Será que só assim a sua mensagem política se tornaria relevante? Ou será que a pessoa, dona dessa voz, precisa de se impor no meio dos seus pares pela agressividade? Será que os representados, nós o povo, nos sentimos mais seguros e mais bem representados se os deputados se mostrarem durões e duronas?
Mesmo no dia a dia, em pequenas coisas, me espanto como estamos numa sociedade onde é preciso violentar para se obter a prestação devida. Liga-se para uma empresa a explicar que o produto entregue em casa não estava em condições e representava um perigo e a doce voz da atendedora responde que anotou a reclamação e que em breve iria mandar alguém para resolver o assunto. Diga-se de passagem, que é uma empresa eficiente que faz a entrega domiciliária do seu produto no espaço de menos de uma hora (pelo menos na cidade da Praia). Esta eficiência no atendimento faz confiar que o problema seria resolvido com a mesma eficiência e que o produto seria trocado “brevemente”, conforme prometido pela simpática atendedora.
Decorrido mais de duas horas sem nada acontecer. Repete-se a chamada que é recebida novamente por uma pessoa treinada para ser amável que de imediato reconhece o número do cliente e tratando com cordialidade pelo nome, confirma que já passou para o serviço responsável a reclamação anteriormente apresentada e que brevemente o assunto seria resolvido. Mantêm-se a confiança e continua a espera. Vem a noite e o dia seguinte começa a correr, a hora de ir para o trabalho aproxima-se e o desespero instala-se.
Não há café para ninguém e se assim ficarmos, o almoço também não poderá ser em casa! Novamente se liga e novamente se é atendido por uma muito amável voz que reconhece o número e sabe o nome da pessoa e com toda a doçura assegura que a reclamação apresentada na manhã do dia anterior tinha sido encaminhada e ia ser resolvida. Mas pode me dizer quando? A amável voz pede para aguardar que iria contactar o responsável para saber. Retoma a chamada uns segundo depois para, continuando com a maior doçura, informar que a assunto seria resolvido brevemente! Entorna-se o caldo e instala-se a violência do cliente. Exige-se falar com o tal responsável, aumenta o tom de voz do cliente, ameaça-se denunciar a situação nas redes sociais e dá-se uma hora para que essa empresa faça a troca do produto avariado por um em condições.
O cliente totalmente transtornado vai tomar um comprimido para controlar a tensão e tenta acalmar-se, enquanto avisa no trabalho que vai chegar um pouco atrasado. Menos de meia hora, tocam a campainha e um jovem simpático aparece com o novo produto e leva o avariado. Assunto resolvido. Fica a pergunta: porquê que foi necessária esta violência logo no início da manhã para se obter uma coisa tão simples? Porquê que duas pessoas (cliente e atendedora da empresa) tiveram um começo de dia tão desagradável, se o assunto podia ter sido resolvido logo a seguir à apresentação da reclamação? Só a violência apressa os resultados?
De certo modo, esta questão sobre a violência é também aflorada por Cláudio Gonçalves, modelo português, no seu artigo de opinião «Isto vi eu, ninguém me contou», quando desabafa: «Triste é dizer que os meios de comunicação vieram até nós e tivemos lugar de fala porque caixotes foram incendiados e não porque um amigo faleceu» Mais uma vez, a evidência que a violência extrema é que capta a atenção da sociedade e obriga esta a olhar para a realidade que prefere ignorar. A morte violenta de Odair Moniz e os atos de violência que se seguiram colocaram as periferias abandonadas e ostracizadas de Lisboa na mesa com membros do governo. Todos declaram que não querem que seja mais uma sessão fotográfica. Que os problemas sejam apresentados e as soluções comecem a ser desenhadas e postas em prática. Que não seja necessária mais violência para que este diálogo prossiga e dê frutos.
Quem me dera ouvir uma voz amável dizer: em breve a violência desaparece. Porém, olhar o mundo através dos ecrãs das televisões e dos smartphones não nos deixa confiar que a violência deixe de continuar a ser o motor que nos move. Não é de agora. Também, foi preciso Jesus morrer de uma forma violenta, dolorosa, irracionalmente humana, para que a salvação chegasse.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.