Como já se tornou habitual nessas circunstâncias, os poderes públicos apelaram à calma e prometeram investigação célere e justiça pronta ao mesmo tempo que se moveram para restaurar a ordem pública. Outros apelos para tranquilidade e para serenamente esperar pela realização da justiça vieram das autoridades cabo-verdianas e de personalidades e organizações comunitárias locais. Já os extremistas, tanto da direita como da esquerda entraram no jogo de costume de uns com frases bombásticas e outros com manifestações exuberantes de indignação e revezando mutuamente nesses papéis procurar levar os ânimos ao rubro.
Nas democracias, em geral, está-se a verificar a polarização progressiva da sociedade com o discurso político a se tornar cada vez mais extremo e com o espaço para a abordagem das questões públicas e do interesse comum, de uma forma mais equilibrada e compromissória, a ficar mais estreito. As comunidades imigrantes são o alvo fácil numa manobra política em que, de um lado, se joga com o receio de perder trabalho para os imigrantes, com o medo da criminalidade que supostamente aumenta devido à imigração e também com uma induzida suspeita de diluição cultural e alteração demográfica devido às crescentes entradas no país. Cola-se ainda a esses temores o ressentimento em relação aos supostos subsídios e benefícios que os imigrantes poderão receber do sistema de segurança social e as vantagens no acesso a estudos e oportunidades devido aos programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI).
De um outro lado, e em geral a partir da extrema esquerda, a manobra em relação aos imigrantes, enquanto minorias sujeitas a várias formas de discriminação, é de os mobilizar num quadro de uma luta mais abrangente contra o sistema político e socio-económico existente. Para isso, o foco vai para questões identitárias e raciais e recorre-se à vitimização sistemática. A experiência eleitoral dos últimos anos nas diferentes democracias tem mostrado que nessa disputa o medo e o ressentimento agitados pela extrema-direita vem ganhando votos e em vários países ou já são governo, ou já estão quase à porta. Curiosamente, o discurso e as tácticas da esquerda mantém-se na mesma linha. Fica a impressão que para certos activistas e sectores de opinião é mais importante agigantar a ameaça da direita radical para demonstrar o falhanço da ordem socio-económica existente do que, com diálogo e compromissos vários, criar a convergência de vontades conducente a uma maior e melhor integração das minorias e dos imigrantes.
E é realmente a integração que se procura quando se toma a decisão de emigrar. O que se pretende realmente é ser parte de uma ordem socio-económica que abre a oportunidade de avanço em termos de rendimento, mas também profissional e até académica. Algo que ele chegou à conclusão que não tem no seu próprio país, ou por má governação ou má gestão económica que não atrai suficiente investimento, não limita efectivamente a informalidade e os custos de contexto e não traz crescimento robusto. Noutros casos, há uma razão extra para emigrar por não estar instituído um Estado de direito democrático e não haver garantias de liberdade e segurança e correr-se o risco de ser vítima de violência do Estado.
É evidente que a última coisa a desejar seria reproduzir no país de destino as condições que se deixou para trás, ou seja, não ter segurança, nem uma economia funcional. Num certo sentido é o que parece acontecer com os excessos na afirmação identitária e o apego a hábitos e formas de estar que minam as possibilidades de tirar mais vantagem do ambiente socio-económico existente, e que, pelo contrário, tendem a provocar conflitos e rejeição da maioria. A ousadia e o querer vencer na vida que animaram o desejo de emigrar são minados pela tentação de vitimização. Tentação essa alimentada por agendas políticas e outras que podem ser legitimas no quadro dinâmico e plural onde surgiram, mas não constituem a motivação central de quem emigra e procura uma ordem institucional inclusiva onde pode participar, sentir-se seguro e beneficiar da riqueza produzida.
Cabo Verde, há mais de um século que tem comunidades emigradas em diferentes continentes. São em geral comunidades bem integradas particularmente nos Estados Unidos e na Europa e para isso deverá ter contribuído um certo sentido de cabo-verdianidade que lhes permitiu sem conflito lidar com outras culturas preservando a sua. A experiência acumulada nessas comunidades deve servir de referência para evitar os excessos actuais da política identitária e das guerras culturais e também para impedir a instrumentalização dos problemas ainda existentes por agendas espúrias que pouco têm a ver com o objectivo de procurar uma vida melhor e ser bem-sucedido no país de emigração. O contínuo reforço da identidade cabo-verdiana, em particular nas novas gerações, poderá ajudar a contornar armadilhas tendo na base uma deficiente compreensão da experiência histórico-cultural de Cabo Verde, que não se consegue reduzir aos modelos aplicáveis noutros sítios, chegando em alguns casos ao ponto de hostilidade.
É um facto que as migrações estão a aumentar em todo o mundo, especialmente o fluxo migratório dirigido para a Europa e os Estados Unidos. Claramente que essa pressão sobre esses países se transformou numa questão política sensível para a qual se tem de encontrar soluções adequadas para poder manter o fluxo. Em Cabo Verde, a emigração ganhou um outro ritmo nos últimos tempos e é fundamental para as pessoas e para o país que tenha as melhores probabilidades de sucesso com boa integração. Quando acontece algo de trágico como é o caso de Odair Moniz a consternação é geral e muito sentida. Relembra a todos os riscos envolvidos na emigração e a importância de solidariamente e em diálogo se fazer representar e participar na procura de soluções para os problemas da comunidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.