TRINTA ANOS DE INDEPENDÊNCIA: do Estado unipartidário ao Estado democrático

PorJosé André Leitão da Graça,27 jan 2025 9:16

José André Leitão da Graça
José André Leitão da Graça

Texto da autoria do nacionalista cabo-verdiano e fundador da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), José Leitão da Graça (já falecido), publicado em 2007, no número especial da revista Direito e Cidadania intitulado “Cabo Verde: três décadas depois”.

Foi sem dúvida um fracasso a implantação em Cabo Verde do Partido único, o mesmo acontecendo com o projecto de União política entre a Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo Verde!

Na análise de Cláudio Furtado “o golpe de Estado na Guiné-Bissau [em Novembro de 1980] viria a fazer cair o projecto de unidade em meio à acusação de desrespeito pelos direitos humanos por parte dos dirigentes do PAIGC (…)”1. Por seu lado – e completando essa análise – acrescenta Fafali Koudava: “Este golpe – o de 14 de Novembro de 1980! – é o resultado de uma profunda crise, sendo que várias das suas causas datam do período da luta pela independência”2.

A mais de 400 km da costa da Guiné, o Arquipélago de Cabo Verde chegou a formar com a Guiné-Bissau – por iniciativa e interesse exclusivos da potência colonial! – uma só entidade político-administrativa. Cabo Verde, porém, é geograficamente um país diferente e distante da Guiné-Bissau; é-o também do ponto de vista cultural e linguístico, bem como no que toca às etnias, muito embora tenham sido trazidos no passado – pelos negreiros – escravos da costa da Guiné.

Dos antigos laços comerciais e administrativos que então “uniam” os dois territórios descontínuos – no exclusivo interesse dos negreiros e colonos - não subsistiram quaisquer laços orgânicos, duradouros, entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau. Só permanecem na evocação de alguns poetas.

Acresce que o povo cabo-verdiano nunca manifestou qualquer vontade de se unir politicamente à Guiné-Bissau. O PAIGC que no continente fez a luta armada popular contra o colonialismo, nunca chegou a implantar em Cabo Verde estruturas partidárias ou outras, como as implantadas nas chamadas zonas libertadas na Guiné. Sendo assim, o PAIGC não devia ser considerado pela ONU “o único e legítimo representante da Guiné e Cabo Verde”.

2.1. Pelas razões expostas, que foram em tempo útil tornadas públicas, e à luz do Direito Internacional, da Carta das Nações Unidas e de outros instrumentos internacionais, como a Declaração sobre a Outorga da Independência aos Países e Povos coloniais, adoptada em 1960 pela Assembleia Geral da ONU, Cabo Verde não devia ser então considerado uma parte integrante do Estado da Guiné-Bissau, como se propagou, então, a vários níveis. Mas a verdade é como azeite…

Não deixa, porém, de ser verdade que na primeira fase de libertação contra o colonialismo, graças à luta armada na Guiné, o PAIGC foi a principal senão mesmo a única alavanca do progresso, o que a História da África registou. No processo de construção do Estado democrático, o papel pioneiro coube, porém, a uma força democrática emergente – o Movimento para a Democracia, MPD – que liderou a “abertura democrática” nos anos 90, trazendo à tona – sem ambiguidades! – a consulta popular através das primeiras eleições livres e democráticas realizadas em Cabo Verde e um rigoroso respeito dos Direitos fundamentais, até então espezinhados, em alguns casos de modo flagrante, durante a I República.

Vem a propósito transcrever aqui extractos do Preâmbulo da nova Constituição da República, elaborada em 1999:

A proclamação da Independência Nacional constituiu-se num dos momentos mais altos da História da Nação cabo-verdiana;

No entanto, a afirmação do Estado independente não coincidiu com a instauração do regime de democracia pluralista, tendo antes a organização do Poder político obedecido à filosofia e princípios caracterizadores dos regimes de Partido único;

Novas ideias assolaram o mundo fazendo ruir estruturas e concepções que pareciam solidamente implantadas, mudando completamente o curso dos acontecimentos políticos internacionais. Em Cabo Verde a abertura política foi anunciada em mil novecentos e noventa, levando à criação das condições institucionais necessárias às eleições legislativas e presidenciais num quadro de concorrência política.

Revogado o artigo 4° da velha Constituição, institucionalizou-se o princípio do pluralismo, consubstanciado num novo tipo de regime político;

A nova Constituição consagrou um Estado de Direito democrático com um vasto catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado […]

A opção por uma Constituição de princípios estruturantes de uma democracia pluralista, deixando de fora as opções conjunturais de governação, permitirá a necessária estabilidade a um país de fracos recursos e a alternância política sem sobressaltos.

Biografia de José André Leitão da Graça

José André Leitão da Graça (nascido a 30 de novembro de 1931 e falecido a 13 de setembro de 2015), foi essencialmente um nacionalista convicto e “esquerdista” aberto a dinâmicas sociais. Nascido na cidade da Praia, filho de um industrial também praiense (Álvaro Leitão da Graça, “Sr. Jú”), foi estudar no Liceu (Gil Eanes) em S. Vicente e teve como professores, figuras máximas da nossa intelectualidade (Baltazar Lopes, Aurélio Gonçalves). Posteriormente, nos finais dos anos cinquenta, na Faculdade de Direito em Lisboa e na “Casa de Estudantes do Império” (CEI) pôde conhecer e conviver com intelectuais e antifascistas portugueses e africanos. Como colegas e amigos caboverdianos teve, entre outros, figuras como: Aguinaldo Fonseca, Celso Estrela, Manuel Duarte e Gabriel Mariano.

Numas férias em Cabo Verde, em 1960, na Praia, juntamente com um grupo de jovens na altura (Manuel Chantre, Arménio Vieira, Francisco Correia e seus irmãos Teófilo e Aires Leitão da Graça), debatiam ideias independentistas (influenciado pelas independências nas colónias francesas e inglesas), o que veio a custar-lhe o seu primeiro exílio (fugira para Dakar numa traineira de pesca nas vésperas da chegada da PIDE-DGS a Cabo Verde) e a prisão dos seus companheiros.

No Senegal e no Gana (início dos anos sessenta), enfrentou a oposição (intrigas, etc.) do PAIGC devido à sua posição contra a “unidade forçada” de Cabo Verde com a Guiné-Bissau, defendida por Amílcar Cabral como uma “questão de princípio”, para além de continuar a fugir das garras da PIDE. Após longo período de ativismo em prol da independência de Cabo Verde (separado da GB) regressou à cidade da Praia após o 25 de Abril de 1974 para continuar a luta e organizar o seu partido: União do Povo das Ilhas de Cabo Verde (UPICV). Durante sensivelmente um ano (até a independência, 05/7/1975), as ilhas de Sotavento conheceram fervorosas lutas entre as duas formações políticas instaladas que só vieram a dar vitória ao PAIGC, com a ajuda do Movimento das Forças Armadas (durante o governo de transição), força pró-esquerdista (ou soviético) que protagonizou a Revolução dos Cravos em Portugal. Presos alguns dirigentes da UPICV e encontrando-se na altura fora do país (em busca de apoios internacionais para a causa), teve que experimentar de novo o exílio, novamente no vizinho Senegal e depois Portugal (já democrático). Em Portugal, aproveitou para concluir o curso de direito, fora professor de liceus e magistrado (juiz de primeira instância) em Beja (Alentejo).

Em 1986, é-lhe permitido o seu regresso à terra natal, sob vigilância e alguma “proteção” do seu velho amigo José Araújo (na altura ministro da Justiça) e integra a Administração Pública cabo-verdiana como jurista. Dá a sua contribuição enquanto tal no Ministério da Justiça, para além de também exercer advocacia, defendendo sobretudo causas sociais ou protegendo os mais vulneráveis, mas sempre com o “bichinho” da política na cabeça.

Por fim, em finais dos anos oitenta, com os ventos de mudanças no mundo (fim da Guerra Fria, queda do muro de Berlim, fragmentação da União Soviética e democratização dos regimes totalitários do leste europeu, exigência de eleições em África, etc.) dá a sua contribuição no debate (na rádio nacional e jornais) e quiçá, na negociação para a abertura democrática em Cabo Verde. Durante e após esse período de transição de paradigma político, procurou ainda levantar o seu partido de “esquerda”, mas a corrente da história determinava outras vias que vieram a ser assumidas pelo Movimento para a Democracia (partido com forte pendor neoliberal) que de facto conseguiu traduzir na altura a vontade dos eleitores e das populações sedentas de liberdade.

A partir da segunda metade dos anos noventa começa a desengajar-se da política ativa com um sentimento de “dever cumprido”.

Intelectual multifacetado, para além da política, teve intervenções nos seguintes domínios: jurídico (Direitos Humanos, Tribunal Penal Internacional, pareceres, leis, etc.); académico (professor de História de África no antigo Instituto Superior de Educação); desportivo (jogador de futebol na Académica de S. Vicente, vólei e ginástica). Publicou textos (ensaios, artigos em jornais, revistas nacionais e internacionais) e um livro.

______________________________________________________

1 Cláudio Alves Furtado. Génese e (Re)Produção da Classe Dirigente.

2 Fafadi Koudava. Démocratie révolutionnaire.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.

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Autoria:José André Leitão da Graça,27 jan 2025 9:16

Editado porAndre Amaral  em  31 jan 2025 10:58

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