Foi sem dúvida um fracasso a implantação em Cabo Verde do Partido único, o mesmo acontecendo com o projecto de União política entre a Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo Verde!
Na análise de Cláudio Furtado “o golpe de Estado na Guiné-Bissau [em Novembro de 1980] viria a fazer cair o projecto de unidade em meio à acusação de desrespeito pelos direitos humanos por parte dos dirigentes do PAIGC (…)”1. Por seu lado – e completando essa análise – acrescenta Fafali Koudava: “Este golpe – o de 14 de Novembro de 1980! – é o resultado de uma profunda crise, sendo que várias das suas causas datam do período da luta pela independência”2.
A mais de 400 km da costa da Guiné, o Arquipélago de Cabo Verde chegou a formar com a Guiné-Bissau – por iniciativa e interesse exclusivos da potência colonial! – uma só entidade político-administrativa. Cabo Verde, porém, é geograficamente um país diferente e distante da Guiné-Bissau; é-o também do ponto de vista cultural e linguístico, bem como no que toca às etnias, muito embora tenham sido trazidos no passado – pelos negreiros – escravos da costa da Guiné.
Dos antigos laços comerciais e administrativos que então “uniam” os dois territórios descontínuos – no exclusivo interesse dos negreiros e colonos - não subsistiram quaisquer laços orgânicos, duradouros, entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau. Só permanecem na evocação de alguns poetas.
Acresce que o povo cabo-verdiano nunca manifestou qualquer vontade de se unir politicamente à Guiné-Bissau. O PAIGC que no continente fez a luta armada popular contra o colonialismo, nunca chegou a implantar em Cabo Verde estruturas partidárias ou outras, como as implantadas nas chamadas zonas libertadas na Guiné. Sendo assim, o PAIGC não devia ser considerado pela ONU “o único e legítimo representante da Guiné e Cabo Verde”
2.1. Pelas razões expostas, que foram em tempo útil tornadas públicas, e à luz do Direito Internacional, da Carta das Nações Unidas e de outros instrumentos internacionais, como a Declaração sobre a Outorga da Independência aos Países e Povos coloniais, adoptada em 1960 pela Assembleia Geral da ONU, Cabo Verde não devia ser então considerado uma parte integrante do Estado da Guiné-Bissau, como se propagou, então, a vários níveis. Mas a verdade é como azeite…
Não deixa, porém, de ser verdade que na primeira fase de libertação contra o colonialismo, graças à luta armada na Guiné, o PAIGC foi a principal senão mesmo a única alavanca do progresso, o que a História da África registou. No processo de construção do Estado democrático, o papel pioneiro coube, porém, a uma força democrática emergente – o Movimento para a Democracia, MPD – que liderou a “abertura democrática” nos anos 90, trazendo à tona – sem ambiguidades! – a consulta popular através das primeiras eleições livres e democráticas realizadas em Cabo Verde e um rigoroso respeito dos Direitos fundamentais, até então espezinhados, em alguns casos de modo flagrante, durante a I República.
Vem a propósito transcrever aqui extractos do Preâmbulo da nova Constituição da República, elaborada em 1999:
A proclamação da Independência Nacional constituiu-se num dos momentos mais altos da História da Nação cabo-verdiana;
No entanto, a afirmação do Estado independente não coincidiu com a instauração do regime de democracia pluralista, tendo antes a organização do Poder político obedecido à filosofia e princípios caracterizadores dos regimes de Partido único;
Novas ideias assolaram o mundo fazendo ruir estruturas e concepções que pareciam solidamente implantadas, mudando completamente o curso dos acontecimentos políticos internacionais. Em Cabo Verde a abertura política foi anunciada em mil novecentos e noventa, levando à criação das condições institucionais necessárias às eleições legislativas e presidenciais num quadro de concorrência política.
Revogado o artigo 4° da velha Constituição, institucionalizou-se o princípio do pluralismo, consubstanciado num novo tipo de regime político;
A nova Constituição consagrou um Estado de Direito democrático com um vasto catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado […]
A opção por uma Constituição de princípios estruturantes de uma democracia pluralista, deixando de fora as opções conjunturais de governação, permitirá a necessária estabilidade a um país de fracos recursos e a alternância política sem sobressaltos.
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1 Cláudio Alves Furtado. Génese e (Re)Produção da Classe Dirigente.
2 Fafadi Koudava. Démocratie révolutionnaire.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.