Um debate improvável: José Lopes e Amílcar Cabral

PorAdriana Carvalho,27 jan 2025 9:16

José Lopes da Silva publicou na revista Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação três artigos intitulados “Instrução e Educação” em dezembro de 1950, fevereiro e abril de 1951.

I

No final de 1950, legitimado por “40 anos de Magistério Primário nestas ilhas, e em parte Secundário”, o Professor José Lopes, no primeiro dos artigos, chama a atenção das famílias, dos governos e dos professores para a situação da Instrução e Educação no Arquipélago e afirma “Progredimos na Instrução, retrocedemos na boa Educação”. Em fevereiro de 1951, no segundo artigo, considera que em algumas ilhas “é relativamente diminuta a percentagem de analfabetos”, o que se explica pelo “desejo da maioria dos pais, mesmo os mais pobres, em seus filhos aprenderam a ler e escrever”.

Na sequência final, em artigo escrito em abril de 1951, José Lopes contrapõe aos progressos da Instrução nas ilhas, a Educação das crianças e jovens onde “há muito mais que censurar que louvar”. Escreveu: “Ou mau sinal destes nossos turbulentos e licenciosos tempos, ou tendência inata para o mal, ou falta dum forte poder de orientação quer dos pais de família, quer das próprias Autoridades superintendentes, o certo é que, dum modo geral, desapareceu o Respeito antigo, a sujeição voluntária, a noção instintiva da Obediência e das proporções e aquela espécie de temor salutar que já constituíram o mais belo ornamento moral dos povos destas Ilhas, aliás dotados, salvo inevitáveis excepções, de tão boa índole”. Exemplifica: “Na praça pública, quase sempre é a plebe a primeira a ocupar os bancos: frequentemente, imundos maltrapilhos” e conclui: “Não há respeito. Todos são iguais. Como não têm a noção das proporções, para esses não existem categorias sociais”.

O Professor considera, ainda, que um povo pode ser intelectualmente culto, mais ou menos, e, apesar disso, não ter Educação. Chega à conclusão de que, o que nos falta, é apenas Educação, “Educação doméstica, Educação cívica, Educação social, Educação colectiva. Educação no mais amplo sentido da palavra”. Conclui a sua exposição, com a convicção que “Agora, nestes convulsos tempos, tão cheios de tremendas ameaças à Civilização Cristã (…), só a Educação nos pode ainda salvar, e não a temos” e que a “Instrução só por si não vale. Instrução sem Educação é flor sem perfume, e flor artificial”.

II

O Engenheiro Agrónomo Amílcar Cabral, em junho de 1951, escreveu no Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação o artigo que intitulou “A propósito de Educação”.

Nas considerações iniciais esclarece: “Quando uma individualidade qualquer se debruça sobre o problema da Educação e o trata publicamente, há que ouvi-lo ou lê-lo, penetrar no verdadeiro significado das suas afirmações, em suma, compreender o que ele tem para dizer e lutar no sentido de que a maioria da população o compreenda. Note-se que compreender não é necessariamente, aceitar”. Uma das individualidades que ouviu e leu foi o Professor José Lopes, nomeadamente, através do seu artigo “Instrução e Educação” (acima referido) publicado no Boletim dois meses antes.

Ao longo do seu artigo, Amílcar Cabral analisa criticamente a visão “simplista” do Professor José Lopes para quem a Educação e Instrução eram dois problemas distintos, independentes. Defende que “hoje, uma colectividade educada é incompatível com a existência, no seu seio, de plebe e não plebe, de exibições de luxo a par da frequência de imundos maltrapilhos1, de quitandeiras mal trajantes, ganhando ao sol das esquinas e das calçadas o pão nosso de um dia ou de outro”. Fundamenta a sua tese no conceito de Educação, defendido pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que tem por fim “permitir aos homens e às mulheres a realização de uma vida útil e feliz, de harmonia com a evolução do seu meio; desenvolver os melhores elementos da sua tradição e facilitar-lhes o acesso a um nível económico e social superior que os coloque em estado de desempenhar cabalmente a sua função no mundo moderno, e viver pacificamente”.

Em discordância intelectual com José Lopes observa: “Longe vai o tempo em que a Educação se confinava a uma pilula de bons costumes e boas maneiras, manipulada de acordo com as conveniências de classe ou de categorias sociais, e que o Homem tinha de engolir inconscientemente, de boa ou má vontade, com resultados mais ou menos eficazes, sem que, todavia, se atendesse aos imperativos das condições materiais da sua existência”. Discorda do Professor que considera “como pilares da Educação a sujeição voluntária, a noção instintiva da Obediência ou qualquer espécie de temor salutar, conceitos por demais subjectivos e, além disso, traços característicos da psicologia do homem-servo”.

III

José Lopes leu e analisou o “valioso artigo de Amílcar Cabral”. Escreve no artigo “Educação pública” (Cabo Verde Boletim, julho de 1951): “Li-o, há minutos, atentamente e chego à conclusão de que, no fundo, estamos de acordo”.

Esclarece que não empregou (nem podia) o termo Sujeição no sentido pejorativo, mas apenas no do acatamento e respeito a que todos temos jus dentro da ordem que deve reger as famílias e as sociedades humanas, sem o quê sobrevém a Anarquia. Afirma: “A sujeição, no meu critério, não é a ferropeia do cativo nem muito menos, as algemas do escravo. A sujeição, para mim, são doces liames de amor e comiseração, os suaves elos familiais e sociais a ligar os homens entre si”.

A liberdade – para o Professor – consiste em se fazer ou praticar apenas o que é justo sem ofender o individuo e o corpo social. “Se degenerar em licença, podem sobreviver as violências demagógicas, e perigar o próprio Estado, que é a Nação, qualquer Nação organizada”. Admite: “Hierarquias haverá sempre., o que não, o que não exclui a igualdade perante a Lei. Daí, haverá também sempre categorias sociais” e conclui: “Cedo ou tarde, a Liberdade víndice triunfa. Libertas, quae sera tamen...”.

Rejeita liminarmente, “a falta de respeito que hoje campeia (até certo ponto) mesmo neste recanto pequenino da Terra, que é um reflexo das más ideias contemporâneas que sopram de longe” e acrescenta, “é absolutamente preciso e necessário pôr termo a tais desmandos, refrear a garotagem irreverente”. Reitera: “Julgo absolutamente necessário pôr termo a tais abusos, e só a Educação o poderá conseguir”. Porém, assevera: “Os meus coinsulares são essencialmente bons. Bastaria lembrar que são raríssimos os crimes graves. Em muitas ilhas vi sempre desertas as prisões. Não têm instintos sanguinários. Neste particular são talvez únicos no mundo. Leiam jornais e confirmem o que afirmo. Todavia dominam em muitos Novos alguns instintos maus doutra natureza.” Assinala que “Pelas esquinas e nas paredes das casas gravam vincadamente palavras e frases obscenas. Para isso aprenderam a ler e escrever. Nas próprias Escolas (de alto a baixo) alguns portam-se muito mal e chegam a praticar actos de inadmissível desrespeito”.

Na parte final do artigo-resposta-ao-artigo-de-Cabral, José Lopes confessa: “Posso tolerar e tolero (por exemplo) as impertinências dum louco e as ejulações de tantos pobrezinhos que nos tomam o passo por toda a parte. É preciso e é cristão. Mas revolta-me o falso orgulho (abunda!), a irreverência, a falta da mais elementar noção das proporções, a soberba (também abunda!), a ingratidão (muito frequente...) e outros grandes defeitos que é forçoso corrigir”.

Nota pessoal

Ao concluir esta síntese da leitura dos artigos que sustentaram o diálogo entre José Lopes e Amílcar Cabral, apercebo-me que os debates sobre Educação e Instrução (e outras temáticas) não fizeram caminho, ao longo do tempo, na colónia e na contemporaneidade, nem se tornaram praxis e tradição nas atuais academias e demais instituições universitárias que se têm fechado em si.

Como estamos ainda no início do Ano Novo, faço um voto: que o exemplo de um Velho Professor e de um Jovem Engenheiro, há 74 anos, possa ser inspirador para a recuperação de discussões (no sentido nobre do termo) e do confronto de ideias competitivas e indutoras do desenvolvimento intelectual e científico dentro e fora da Academia.

1 No artigo de Amílcar Cabral, as expressões em itálico foram transcritas do artigo “Educação e Instrução” do Professor José Lopes (Boletim Cabo Verde, abril de 1951). 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.

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Autoria:Adriana Carvalho,27 jan 2025 9:16

Editado porAndre Amaral  em  27 jan 2025 9:16

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