Esse caso que ocorreu em Luxemburgo nos empurra a este artigo, assim como poderia ser mais um episódio ocorrido nas ilhas. Essa padronização do ato de violência e o modus operandi não diferem de lugar para lugar; permanecem idênticos em qualquer canto. Já foi constatado entre nós, com muita propriedade, que a violência baseada no género é um problema sério em Cabo Verde e entre cabo-verdianos. Para além da realidade vivida no país, há muitos serviços e organismos sociais de países de acolhimento dos nossos emigrantes a fazer tal observação. Sobressai um traço sociocultural de masculinidade tóxica que se leva a todo lado. Em 2023 mais de dois terços dos cabo-verdianos responderam num inquérito da Afrobarometer que a violência baseada no género era a questão mais importante dos direitos das mulheres cabo-verdianas. 97 % dos inquiridos reconheciam também que não se justifica, em momento algum, os homens usarem a força física contra as suas esposas.
No entanto, seja nas ilhas ou na diáspora, com uma frequência que estarrece, lemos notícias tristes que dão conta de violência entre casais que culmina de forma trágica com a morte, maioritariamente, do cônjuge do sexo feminino. Aliás, há muito que assinalar o Dia da Mulher Cabo-verdiana tornou-se mais uma data de reflexão sobre a violência do que de celebração em si da dádiva da mulher crioula. Elas (nós) são (somos) as eternas guerreiras, no ataque ou na defesa. Desconhecem(os) a paz, o sossego, o deleite. Esta realidade é dramática e deixa uma mancha na nossa poética de Morabeza.
Cabe ao Estado, através de instituições próprias, adotar práticas que fomentem a igualdade de género e eliminem estereótipos sexistas. Uma dessas medidas importantes já tomadas no país é a aprovação da Lei da VBG que aposta na prevenção e na repressão, para além da adoção de planos de ação e de sensibilização que recomendam, por exemplo, a criação de cursos de Igualdade de Género e de Cultura de Não Violência a nível do ensino superior. A mesma diretiva existe para os profissionais da área do ensino de outros níveis.
Percebe-se que ao centrar um conjunto de ações de combate à VBG na vertente sensibilização, o legislador observou, e bem, que o desafio da violência baseada no género em Cabo Verde reflete um problema de ordem social e psicológico coletivo que traz o instinto primário do indivíduo para um quadro recorrente de irracionalidade, relativizando valores como a paz familiar, a cordialidade, a troca saudável, a maturidade relacional, e o direito à vida. Há uma tendência cultural naturalizada de encarar a relação conjugal como um permanente enfrentamento, atravessado por jogos de inibições e restrições. Vive-se nas relações intrafamiliares em Cabo Verde um forte sentimento de posse, e tendencialmente conduzido pelo masculino, sustentado ora por questões de ordem económica, ora pela dependência emocional e negação. A masculinidade crioula se revela corriqueiramente por atos de possessividade e necessidade de afirmação. Um fator cultural e sociológico pouco debatido que pode flagelar o próprio homem, que por vezes vê-se obrigado a esconder a sua opção sexual, e mostrar-se macho e misógino perante a família e a sociedade.
Dito isso, é forçoso aqui sublinhar que Cabo Verde é um país que separa, com completa naturalidade, as narrativas, sejam elas políticas, académicas e legislativas, das práticas do quotidiano. É como se vivêssemos em realidades paralelas: o que partilhamos nos debates, nas conferências e em muitas leis figuram como palavras adormecidas. Mal saímos pela porta fora dos auditórios e das salas públicas onde decorrem os debates, voltamos à nossa vida normalizada na violência, na agressão passiva, e na extrema desigualdade de género nas relações interpessoais, conjugais, familiares, laborais e sociais.
Combater a violência baseada no género passa pela adoção, de forma permanente, consistente e desinteressada, de atitudes que combatam todos os comportamentos sexistas de homens, mulheres e instituições; por desencorajar e desconstruir todas as crenças machistas no seio dos jovens e das crianças; por ser intransigente perante quaisquer comentários que naturalizam atos quotidianos de violência; por rejeitar quaisquer justificações dos atos de violência: e, finalmente, por genuinamente se posicionar em prol de uma sociedade equilibrada, conectada com as virtudes da igualdade, e que preze a paz social e a vida.
Pouca ou nenhuma diferença farão os amontoados de leis e planos que não são rigorosamente implementados e seguidos. Pouca ou nenhuma diferença faz a Lei da VBG numa sociedade que não reconhece, de facto, o feminicídio e que apresenta uma definição diluída da violência baseada no género como um mal que atinge tanto as mulheres como os homens, torcendo o nariz para os contornos de uma realidade com raízes culturais profundas e obscuras que ninguém quer cavar para descobrir.
A completar o quadro trágico de vítimas mortais que vão entrando nas estatísticas, constata-se e aceita-se, com estranha naturalidade, uma tendência de narrativa que condena o comportamento de algumas vítimas, e vasculha justificativas para o crime do homem que abusa e mata. É comum ouvir e ler sobre as razões que levaram o homem a “perder a cabeça”. Conclui-se assim que o exacerbado controlo do outro, leva sempre a um precário autocontrolo do sujeito violento. Esse sujeito deslocado, diga-se, é coletivo e nos interpela enquanto sociedade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.