Na transição da filosofia antiga para a medieval um papel central foi desempenhado pelo neo-platonismo, em particular por Plotino. Este concebe uma filosofia orientada para a teologia e para uma visão mística do mundo – mística significa união com Deus. Esta preocupação religiosa abriria caminho para a corrente denominada Patrística como primeiro projecto de reconciliação entre a filosofia grega e a cultura cristã. Esta designação refere-se aos Padres – Pais – da Igreja, que elaboram uma síntese entre o cristianismo e o platonismo, culminando esta corrente em Santo Agostinho, que viveu ainda nos finais do mundo antigo, mas já antecipa os fundamentos da filosofia medieval. Antes do existencialismo, ele já assumia uma unidade entre a vida e o pensamento, a experiência vivida e as ideias, tendo elaborado uma autobiografia espiritual – teológica e filosófica - que descreve o seu itinerário em direcção a Deus: as Confissões. Em vez de expor o seu pensamento de modo impessoal, construindo um sistema enquanto arquitectura de conceitos, estrutura a sua obra de um modo pessoal.
A nossa relação com Deus não depende de demonstrações racionais da Sua existência, nem de contemplarmos a Sua obra exteriormente, no Universo criado, mas é uma relação interior a nós: Deus é mais interior a mim do que eu próprio. A noção de pessoa que Agostinho elaborou, e está na base dos direitos humanos enquanto direitos da pessoa humana, é a de um ser em relação com Deus e com os outros. E o conhecimento não assenta apenas uma compreensão do mundo, mas no amor, num compromisso que envolve tanto a inteligência como a existência, a razão como a fé.
O encontro de Santo Agostinho com Deus implicou um percurso com sobressaltos, atravessado por uma permanente inquietação manifestada por etapas marcantes da sua vida, descritas nas Confissões: Para Ti fomos criados, Senhor, e o nosso coração está insatisfeito até que descanse em Ti. A sua vocação primeira foi de ordem intelectual, como investigador e professor, tendo começado pelo ensino da Retórica e pelo estudo dos clássicos do pensamento antigo. A preocupação religiosa só se manifestou com a adesão ao maniqueísmo, corrente muito influente no seu tempo, que afirmava existirem dois princípios, o do bem e o do mal, que se confrontam no mundo e dentro de cada um de nós. No exercício de funções eclesiásticas, Santo Agostinho pronunciou centenas de homilias e escreveu muitas obras, podendo-se destacar dentre elas as Confissões, A Cidade de Deus, O Mestre, e O Livre Arbítrio.
Após esta fase, o encontro final de Santo Agostinho com a religião deu-se com a conversão ao cristianismo e o prosseguimento de uma carreira eclesiástica culminando no seu regresso à África Natal, onde assumiu o cargo de Bispo de Hipona. O ponto de viragem deu-se quando estava na Itália e aí encontrou o Bispo católico Ambrósio, que o atraiu pelo modo como pensava e vivia a mensagem cristã tanto pela inteligência como pela fé – a via que Agostinho iria trilhar – compatibilizando a filosofia neo-platónica com a Palavra bíblica. Já tinha trinta e dois anos quando se deu essa conversão, e um ano depois fez-se baptizar, em Milão, e desde então não deixou de reflectir sobre a mensagem cristã no mistério indeclinável que a envolve e no que uma razão limitada podia esclarecer. Os problemas da Filosofia Antiga permanecem na sua reflexão, desde o do ser humano (Antropologia), ao do conhecimento (Gnosiologia), da política ou da ética. Mas são vistos a uma nova luz que transcende a das Ideias platónicas ou do Uno plotiniano: a iluminação que nos traz a fé, ultrapassando a razão filosófica dos antigos: a fé ilumina a razão, e a razão é esclarecida pela fé. A filosofia, antiga “rainha das ciências”, torna-se assim auxiliar da teologia, deixando de ser auto-suficiente, para passar a abrir-se à transcendência divina.
A experiência de pensamento e vida de santo Agostinho ganhou uma universalidade que dá à sua visão uma repercussão que o torna num nosso contemporâneo. Um paralelo entre o seu tempo e o nosso é o de ambos corresponderem a períodos de crise, tanto no âmbito socio-político como no dos valores, e da busca por um horizonte de esperança. Santo Agostinho viveu no fim do mundo antigo, assistindo a desagregação do Império Romano e à ascensão de correntes cépticas, que negavam a possibilidade do conhecimento, e niilistas, rejeitando os valores prevalecentes na cultura clássica – o bem, o belo, o justo e o verdadeiro. Precisamos de reencontrar um caminho e um sentido para a vida pessoal e social, como fez Santo Agostinho no seu tempo, e a sua obr continuando a sua obra a abrir caminhos possíveis e horizontes de sentido.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1214 de 5 de Março de 2025.