19 de fevereiro de 1990: a estória do PAICV e a tentativa de apropriação da democracia

PorJacinto Santos,14 mar 2025 11:04

​O PAICV é exímio em truncar, falsificar e apropriar-se dos factos ou episódios, elementos constitutivos da história política recente deste país porque ele próprio se considera o protagonista único e total de uma história mistificada e corporizada por um grupo que se auto-intitulou como os melhores filhos e a encarnação do povo cabo-verdiano. Assim, fizeram da independência um bem supremo para justificar a heroicidade dos "combatentes", transformando-se numa clique que se sobrepôs ao partido, ao Estado e à sociedade, assente em laços de gratidão eterna!

A narrativa de que o 19 de fevereiro de 1990 significa a abertura ao multipartidarismo e à democracia pluralista é de uma falsidade história atroz. É a mesma narrativa que fez o PAICV autodenominar-se partido da independência, quando é sabido que foi criado em 1981 e que depois do golpe de Estado de 25 de abril de 1974, o PAIGC não existia em Cabo Verde e nenhuma luta política dirigida por esse partido ocorreu no arquipélago!

Vamos aos factos e aos discursos da época:

1.Respondendo à mensagem dos membros do CN do PAICV, no âmbito da apresentação de cumprimentos por ocasião do Ano Novo, Aristides Pereira afirmara: “não obstante, há pouco mais de um ano, o III Congresso ter concluído que o nosso sistema político, na presente etapa do desenvolvimento do país, é aquele que melhor serve os interesses de Cabo Verde na luta pela reconstrução nacional”, os acontecimentos políticos que se verificaram no plano internacional a uma velocidade espantosa, por todos imprevista, impõem-nos uma reanálise do sistema político, seja para reafirmar as decisões adotadas, seja para introduzir alterações que se revelarem necessárias, tendo acrescentado : “na verdade, os dados que serviram de base à nossa análise já não são absolutamente os mesmos”.

A posição de Aristides Pereira baseava-se na confiança de que “(…) o sistema político (saberá) manter a sua capacidade de resposta face às necessidades da sociedade global, nos mais variados planos, e desta obter o apoio indispensável à sua ação”.

2. O PAICV sabia das movimentações iniciadas em finais de 1988 com vista à mudança do regime, de acordo com o Relatório Secreto da Direção-Geral de Segurança Nacional (Polícia Política) de 1 de janeiro de 1989, sob o título: ALGUNS DESAFIOS SUSCITADOS PELO PROCESSO DE ABERTURA. A dado passo o Relatório afirma: "(...) qual o espaço de ação política que virá a ser permitido aos opositores do regime? Quais os limites dessa ação? Que tipo de respostas a serem dadas? Os dados operativos indiciam intensa actividade opositora para os próximos tempos. Se essa actividade internamente se tem caracterizado por uma fraca capacidade organizativa e por ações pontuais isolados, tudo indica que irão ser tentadas formas de aglutinação de forças opositoras (alianças políticas) à volta do principal ponto de convergência dos adversários do regime à busca de um espaço de ação opositora aberta, portanto questionar o sistema de Partido Único".

Mais à frente, o Relatório Secreto, identifica os indicadores que "apontam para a reorganização de aliança(s) em vista à criação ou reactivação de grupo(s), partido(s) ou frente(s) organizadoras, de entre os quais se destaca (...) criação de figuras ou casos que possam vir a ser líderes ou fazer convergir os opositores (Jacinto)".

Conclui o Relatório Secreto: "no fundo, o problema que se põe é o de se saber como gerir a abertura, isto é, até onde se poderá preservar o nosso sistema com esta abertura e que concessões terão de ser prevenidas".

O Conselho Nacional do PAICV adotou as recomendações da Polícia Política e a estratégia de Gorbatchev de liberalização do PCUS por dentro, através da Perestroika e do Glasnost, tendo adotado as seguintes decisões:

"6. Recentemente, por ocasião do III Congresso (....) o sistema político foi amplamente debatido. Não obstante o III Congresso ter concluído "que o nosso sistema político, na presente etapa do desenvolvimento do país, é aquele que melhor serve os interesses de Cabo Verde na luta pela reconstrução nacional", não deixou de recomendar o seu aperfeiçoamento e medidas para o reforço da organização da sociedade e a sua participação e responsabilização no e pelo desenvolvimento.

8.1. no quadro do aperfeiçoamento do sistema eleitoral nacional promover a introdução do princípio de listas concorrentes. Recomendar aos órgãos competentes do Estado a alteração da lei eleitoral para a Assembleia Nacional Popular, de modo a permitir, que nas próximas eleições legislativas, além do PAICV, grupos de cidadãos possam apresentar listas de candidatos".

O objetivo do PAICV era claro: manter-se como uma autocracia fechada, portanto um partido totalitário, força dirigente da sociedade e do Estado, que apenas permitia a grupos de cidadãos concorrer em eleições para formar governo. Estava tão convencido que nem sequer permitia a abertura a um multipartidarismo limitado, como fez o Senegal em 1970, por exemplo. Para o PAICV o regime de partido único era inquestionável apenas precisava de "retoques" com vista à sua adaptação a um novo contexto político.

O PAICV não queria a eliminação do regime totalitário de partido único, o mesmo que dizer que não queria a democracia e o Estado de Direito democrático. É este o registo histórico do significado da decisão do Conselho Nacional do PAICV de 19 de fevereiro de 1990. Se fosse por essa Resolução ainda não teríamos a democracia e o Estado de Direito, porque o objetivo era transformar o PAICV num partido dominante como afirmara Basílio Ramos (vozdipovo de 7 de abril de 1990): "de qualquer forma, o PAICV tem experiência, maturidade e penetração suficientes na sociedade para a ser, no mínimo dominante, pelo menos, durante os próximos anos. Estou convencido de que continuará a ser o partido dominante em Cabo Verde".

É que em função da Resolução do CN do PAICV os partidos políticos que, eventualmente, poderiam ser criados só poderiam participar nas eleições legislativas, depois de 1995, isto porque de acordo o Secretário-Geral Adjunto do PAICV e Iº Ministro "um partido não nasce de geração espontânea", e aqui reside o erro fatal do PAICV: de facto, o MpD não nasceu de geração espontânea, como confirma o Relatório da Polícia Política de 1 de janeiro de 1989.

O que fez o PAICV mudar de opinião e recuar na sua decisão?

A apresentação no dia 2 de abril de 1990 da Declaração Política de 14 de março de 1990 subscrita por mais de meio milhar de apoiantes ao Secretário-Geral do PAICV e ao Presidente da República Aristides Pereira, marcando assim formalmente a existência do MpD. Estava Aristides Pereira diante do "embrião de um partido político com um potencial, à partida, de mais de meio milhar de apoiantes que assinaram o seu documento (José Vicente Lopes, vozdipovo de 7 de abril 90)". Este é o facto total que mudou radicalmente o processo político que nos levaria à transição do regime de partido único para a democracia à ocidental e ao Estado de Direito democrático, em consequência à implantação da IIª República.

De realçar a oposição firme do MpD, inserta na Declaração Política, que consiste no seguinte em relação à Resolução do CN do PAICV: "com efeito, não se trata do aprofundamento do sistema político atual, mas, pura e simplesmente, da sua substituição dado que se tornou contraproducente e historicamente ultrapassado. Portanto, contrariamente às insistentes afirmações do PAICV, a democracia em Cabo Verde tem de ser CONSTRUÍDA e não aperfeiçoada porque, de facto, nunca existiu entre nós". Com esta demarcação, o MpD colocou o PAICV sob pressão.

Enquanto o PAICV pretendia jogar com o tempo para prolongar a sobrevivência do sistema, o MpD crescia no terreno de forma maciça, galvanizando a população residente e na diáspora para a mudança. Porém uma voz dissonante surgira no seio do PAICV: Felisberto Vieira chamara a atenção, afirmando que não se tratava da "uma mudança numa situação de entropia do sistema (vozdi povo de 7 de abril 90".

Nesta senda, o MpD organizaria no ex-Centro Social 1º Maio, no dia 3 de junho de 1990, a sua maior reunião com a presença de mais de 700 pessoas, tendo Carlos Veiga, Coordenador Nacional, apresentado as linhas programáticas do MpD e afirmado que "o MpD não é um reduzido grupo de intelectuais diletantes da Praia, mas sim uma força nacional, real e dinâmica que se reforça, rumo à conquista do poder para um futuro, de democracia, à liberdade, à satisfação efetiva das necessidades fundamentais e ao desenvolvimento de toda a nação cabo-verdiana".

No fim da reunião, os presentes aprovaram por unanimidade a Moção que exigia:

1. a convocação de uma sessão extraordinária da ANP para a revogação imediata do Art. 4º e conexos da Constituição e elaboração de leis dos partidos políticos.

2. a dissolução imediata da Polícia Política;

3. a despartidarização das Forças Armadas;

4. a realização de eleições legislativas antes das presidenciais.

5. o "desmame" imediato do PAICV e seus satélites em relação ao Estado.

6. a revogação imediata do Art. 50º da Lei de Imprensa: diz que não é admitida a prova da verdade dos factos se a pessoa difamada for o Presidente da República.

7. a criação imediata de um Conselho de Comunicação Social constituído por pessoas idóneas e independentes capazes de garantir isenção e imparcialidade no processo de transição para a democracia.

A dinâmica no terreno deixou o PAICV sem margem de manobra para conduzir de forma unilateral e em função do seu interesse o processo de transição. Assim, no dia 21 de setembro de 1990, as Delegações do MpD e do PAICV assinaram o Memorandum das Conversações Políticas, que definiu o quadro do processo de transição, tendo sido publicado no dia 2 de outubro no Jornal vozdipovo, o que confere à transição cabo-verdiana alguma peculiaridade: o movimento da sociedade civil sem existência legal fez em regime de "cogestão" política o processo de transição para a democracia.

O PAICV não teve sequer tempo para proceder à liberalização do regime antes da transição, isto é, não pode atribuir direitos civis e políticos negados aos cabo-verdianos durante 15 anos, porque estes se apropriaram desses direitos, quais sejam a liberdade de expressão, de manifestação, organização e de criação de partidos ou associações políticas antes do desmantelamento do regime totalitário de partido único.

Para quem tenha o mínimo de conhecimento do fenómeno político, facilmente chegará à conclusão que o MpD não poderia jamais ter nascido depois da resolução do CN do PAICV do dia 19 de fevereiro de 1990 e, tão-pouco um movimento espontâneo. Efetivamente, no dia 4 de fevereiro de 1990 o núcleo de fundadores já tinha aprovado o Manifesto para a criação de uma organização política autónoma.

No dia 5 de março já tinha aprovado o projeto de Declaração Política. No dia 14 de março de 90 aprovou a Declaração Política e recolheu a assinatura de mais de 500 apoiantes, de 14 a 31 de março de 90. No dia 2 de abril procedia à entrega da Declaração Política ao Secretário-Geral do PAICV e Presidente da República, Aristides Pereira.

Portanto, o Movimento estava dotado das suas linhas programáticas, de uma coordenação e de estruturas em todas as ilhas do país e de representantes na diáspora. Em novembro de 1990 organiza a sua Convenção Constitutiva, tendo aprovado o seu Programa Político, estatutos e eleitos os seus primeiros dirigentes.

Moral da história: durante 10 anos o MpD foi partido dominante do sistema político cabo-verdiano, tendo aprovado sozinho a Primeira Constituição liberal e democrática de Cabo Verde!

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1215 de 12 de Março de 2025.

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Autoria:Jacinto Santos,14 mar 2025 11:04

Editado porAndre Amaral  em  14 mar 2025 14:20

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