O Movimento Fundador da Crioulidade
A mestiçagem que nos define não é mero acidente, mas acto fundador — uma resposta criativa à ausência, um projecto colectivo que transformou dispersão em comunidade e diversidade em alma comum.
Essa capacidade de invenção foi posta à prova com o 25 de Abril de 1974. Em São Vicente, as ruas encheram-se de povo, bandeiras e esperança: parecia que, finalmente, a liberdade permitiria ao arquipélago desenvolver-se segundo o seu próprio génio. Contudo, como observo em DizCorrendo, o sonho foi capturado por projectos ideológicos que, em vez de respeitarem a diversidade crioula, tentaram impor modelos de africanização homogénea, alheios à realidade mestiça e atlântica das ilhas. A partidarização, a uniformização forçada e a desconfiança contra a diferença marcaram o ambiente pós-revolucionário, contrariando o impulso criativo que sempre sustentou a construção identitária de Cabo Verde.
O arquipélago viu a sua complexidade identitária ser espartilhada por narrativas simplificadoras, desconsiderando a sua singularidade mestiça e atlântica. Em vez de promoverem um futuro assente na pluralidade e criatividade históricas, as forças emergentes tentaram remodelar a sociedade segundo padrões exógenos, rompendo a continuidade de um processo de afirmação identitária tecido desde o século XIX.
Esta tentativa de africanização normativa negligenciou a herança crioulizante do arquipélago e bloqueou o florescimento de um projecto nacional enraizado na sua história de resistência cultural e mobilidade atlântica. Como sublinho em Ilhas Crioulas, Cabo Verde é uma sociedade de encruzilhada — uma mestiçagem criativa — e qualquer projecto que esqueça essa matriz gera ressentimento e alienação.
O verdadeiro sentido do 25 de Abril para Cabo Verde deveria ter sido a reafirmação da sua identidade plural e aberta ao mundo. Em vez disso, a imposição de modelos ideológicos importados amputou a liberdade conquistada, dificultando a plena afirmação de um país que sempre soube fazer da adversidade um lugar de reinvenção e da diferença uma fonte de força.
O nosso processo histórico ensina que a construção nacional nunca se baseou na pureza de um modelo herdado, mas sim na capacidade de recriar e reinventar referências diversas. Essa marca distingue Cabo Verde no contexto africano e atlântico e exige, ainda hoje, uma compreensão subtil da nossa identidade, para lá das simplificações essencialistas que frequentemente toldam a nossa auto-percepção.
O Silenciamento da Alma Crioula
O episódio mais dramático dessa tensão entre identidade vivida e ideologia imposta ocorreu em 1977, com as prisões em São Vicente e Santo Antão. Não foi apenas repressão política: foi tentativa de silenciamento cultural. Nas celas improvisadas do antigo quartel de João Ribeiro, combatia-se a alma crioula do arquipélago. O regime confundia pluralidade cultural com traição. Como sublinho em DizCorrendo, a essência de Cabo Verde reside precisamente na arte de tecer identidades a partir da diferença e da mistura. Negá-la é amputar a originalidade que nos torna únicos no Atlântico.
O perigo de uma africanização redutora, ainda hoje latente, reside em ignorar que Cabo Verde não é mera extensão do continente africano. A nossa identidade formou-se num espaço de cruzamento e mestiçagem. Submeter Cabo Verde a modelos homogéneos seria trair a sua vocação histórica de construir pontes entre culturas.
A mestiçagem cabo-verdiana não é mera mistura étnica: é um movimento criativo e simbólico, forjando uma nova maneira de ser e estar no mundo. Esta capacidade de síntese tornou-nos uma nação atlântica antes da própria consciência atlântica, vocacionada para o diálogo, a adaptação e a inovação cultural.
Crioulidade: Identidade em Movimento
Falar hoje de crioulidade é mais do que invocar o passado: é afirmar uma proposta civilizacional para o futuro. A crioulidade é pertença múltipla, liberdade criativa, invenção contínua de sentidos e de mundos. Como argumento em DizCorrendo, é memória viva de resistência e projecto de autonomia cultural.
A diáspora tornou-se o prolongamento natural dessa dinâmica. Livres dos espartilhos ideológicos, os cabo-verdianos espalhados pelo mundo tornaram-se agentes activos da renovação identitária. Cada emigrante em Boston, Paris, Lisboa ou Roterdão é uma nova página da nossa história mestiça. O crioulo renova-se em contacto com novas realidades; a morna cruza-se com o jazz; o batuque ressoa no rap; o funaná adapta-se às batidas electrónicas.
Esta capacidade de reinvenção contínua torna a crioulidade cabo-verdiana especialmente relevante num mundo globalizado. Enquanto muitos povos se debatem com crises de identidade, a experiência crioula ensina a viver a pluralidade como vocação.
Crioulidade: Liberdade que se Escreve Todos os Dias
Inventámos o país. Continuamos a inventá-lo. A liberdade que celebramos — política, cívica, cultural — só será plena se aceitarmos a nossa vocação crioula: a liberdade de ser múltiplo, de reinventar mundos. Ser crioulo é ser artífice de pontes, cultivador de diferenças.
Celebrar a crioulidade é celebrar a liberdade como acto vivo e permanente. É lançar-se, como os antigos marinheiros, rumo a horizontes ainda não traçados, confiando na bússola íntima da nossa capacidade de reinvenção. Em cada cabo-verdiano — no rumor de Boston, na luz vibrante de Paris, no compasso de Roterdão — ecoa a promessa de que somos, e continuaremos a ser, um povo forjado no vento, no encontro e na liberdade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.