Libertar-se da autocensura

PorA Direcção,9 mai 2025 8:57

Pelo 3 de Maio, Dia da Liberdade de Imprensa, a ONG Repórteres Sem Fronteiras publica o ranking dos países com base na avaliação das condições para o exercício livre dos órgãos de comunicação social e da actividade jornalística. Cabo Verde ficou na posição 30 do ranking, uma melhoria de 11 lugares em relação ao ano anterior. Visto pelos indicadores, percebe-se que o que negativamente pesa mais é a dependência económica.

Destaca-se o facto de 70% dos jornalistas estarem nos órgãos públicos que sobrevivem à custa de subsídios do Estado, usufruindo de melhores salários e estabilidade, e o facto de os média privados enfrentarem um crescimento limitado por um mercado publicitário restrito.

Quanto aos outros indicadores, em particular o do quadro jurídico para o exercício das funções e o da segurança para os jornalistas, constatam-se melhorias significativas. O que parece que não muda após sucessivos relatórios dos RSF é a questão da autocensura que, segundo o documento, “tornou-se um hábito no país”. Como explicação atribui-se Cabo Verde uma “cultura de sigilo” e acusa-se o Estado de “restringir o acesso a informações de interesse público”. Para a compreensão do fenómeno da autocensura talvez seja importante notar que não se limita aos jornalistas.

É mais amplo como recentemente se constatou num programa radiofónico da RCV em que se procurou justificar a dificuldade em conseguir comentário económico com a autocensura dos economistas. Provavelmente existirá em vários outros sectores indicando não tanto uma cultura de sigilo, mas uma atitude de conformismo com narrativas bem enraizadas e de crença em verdades convenientes. Para isso contribuíra certamente o excessivo peso dos órgãos públicos de comunicação social e a fragilidade dos média privados. Com o pluralismo na esfera pública limitado por essas distorções, dificilmente se consegue desenvolver o pensamento crítico, a coragem para apresentar ideias novas e a ousadia de ser diferente.

Não era para ser assim. A Constituição obriga a que haja um serviço público da rádio e da televisão, mas estipula que o Estado deve garantir a isenção dos órgãos e que deve ser assegurado a expressão e o confronto de ideias das diferentes correntes de opinião. Ou seja, que é fundamental existir pluralidade interna nesses órgãos e que para isso há que garantir a liberdade dos jornalistas perante o poder político e o económico. Mesmo a nomeação e a demissão dos directores de Informação e de Programação devem ser precedidas de parecer favorável da autoridade reguladora (ARC) eleita por dois terços dos deputados da Nação.

A persistência da autocensura num tal quadro deriva provavelmente dos problemas de origem dos órgãos públicos de radiodifusão e da cultura institucional subsequente. No processo de independência foram eliminadas as rádios privadas e de seguida transformadas em órgãos de propaganda política. Ao longo dos primeiros quinzes anos tudo se fez para, nas palavras de um alto dirigente, não se ter “especialistas de informação” (jornalistas), mas sim “militantes que coordenam o trabalho de levar a cada cidadão o conhecimento” do progresso do país.

Com o advento da democracia, não se mudou realmente para uma cultura de isenção e de dar expressão ao pluralismo de ideias. E a verdade é que, sem assunção completa desses valores e num quadro democrático de normal tensão entre o governo e a imprensa, a independência em relação aos poderes político e económico garantida aos jornalistas deixava espaço para simpatias políticas em relação a um partido ou para vitimização perante outro, sob a capa de autocensura. As malhas ideológicas em tensão com os novos valores e princípios constitucionais da Segunda República, que continuaram a entremear as instituições, contribuíram para que o mesmo fenómeno de simpatia ou autocensura, conforme o caso, se propagasse para outros sectores, em particular os que lidavam com o conhecimento, a informação e a cultura.

A exagerada desproporcionalidade de cobertura dos média públicos em relação aos privados criada pelas tomadas das rádios há cinquenta anos nunca foi alterada significativamente. Parece que todos os governos na vigência do regime democrático se sentiram confortáveis com a situação ou se viram impotentes para a alterar, apesar de todos os partidos a criticarem quando na oposição. Em consequência, a expressão e o confronto de ideias no país não acontecem ao nível que se seria de desejar em democracia.

No público há os constrangimentos, já referidos, no pluralismo interno exigido aos órgãos. Nos média privados, a autocensura pode ser uma forma de lidar com um mercado publicitário tornado exíguo pela posição hegemónica do Estado. O problema é que, quando todos se alinham para sobreviver, diminui-se o pluralismo externo na base de órgãos editorialmente diversos que devia produzir o confronto de ideias.

Os sectores da cultura e da educação e as universidades que podiam compensar as deficiências na dinamização das ideias têm-nas provavelmente aumentadas. Sob a influencia de políticas identitárias e de correntes de pensamento polarizadoras da sociedade que alimentam o ressentimento e a vitimização não se cria espaço para o pluralismo e o debate de ideias. Pelo contrário, encadeiam-se incentivos como bolsas para estudo e investigação, edição de obras, facilidades de carreira e de contratação para criar activistas e passar ideias iliberais.

Nos Estados Unidos a percepção de que se está a fechar ao confronto de ideias com abordagens similares já serviu de pretexto para uma forte reacção do governo Trump contra certas universidades. O mesmo dá sinais de acontecer noutras partes do mundo. Em Cabo Verde ainda se fica pelo conformismo e pelo reforço da autocensura.

Entretanto, as consequências negativas vão-se acumulando. Um exemplo disso é o facto de no dia da língua portuguesa, que é a língua oficial, a língua escrita do país e da literatura cabo-verdiana e a língua do ensino, sem reacções de protesto não se dar trégua ao confronto do crioulo com o português e com a problemática da sua oficialização. Parece que não importa os estragos visíveis que essa atitude provoca diminuindo a disponibilidade das crianças e jovens em aprender a escrever, em ler livros e manuais escolares e em ser cidadãos plenos, porque capazes de se comunicarem plenamente na língua oficial e potenciarem todo o conhecimento acumulado do país. Sem preocupação com o impacto real do activismo de motivação ideológica na vida das pessoas parece que o pretendido é análogo ao que se consegue do bullying: conformar atitudes, criar falta de confiança e autocensurar-se.

Recentemente viu-se gente que se autoglorifica como africano ou como donos da independência a chamar os cabo-verdianos de racistas e a tomar por saudosistas quem celebrar o 25 de Abril sem a devida autorização. Por aí vê-se que o bullying no presente parece um instrumento de preferência para quem, como diz George Orwell, tudo faz para controlar o passado para poder controlar o futuro. Há, porém, que quebrar essa relação de vassalagem para que os relatórios dos RSF deixem de apontar a autocensura como um hábito e se acabe com a cultura de verdades convenientes em Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1223 de 07 de Maio de 2025. 

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Autoria:A Direcção,9 mai 2025 8:57

Editado porAndre Amaral  em  9 mai 2025 8:57

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