Corsino Fortes: Dez Anos de Saudade do Poeta da Utopia

PorManuel Brito-Semedo,25 jul 2025 11:41

Assinala-se este mês o décimo aniversário da morte de Corsino Fortes, ocorrida a 24 de Julho de 2015. Poeta, diplomata e homem público cabo-verdiano, Corsino foi autor de uma obra literária marcante para a afirmação cultural pós-independência e ocupou cargos de destaque na diplomacia e na administração do país. Este artigo recorda a sua trajectória, as suas funções públicas e o legado que deixou nas letras e na cultura de Cabo Verde.

Uma vida ao serviço da palavra

Nascido no Mindelo, em 14 de Fevereiro de 1933, cresceu numa cidade portuária marcada por influências atlânticas, que moldaram a sua visão plural da cultura e da identidade. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa, em 1966, convivendo com intelectuais africanos e acompanhando os debates políticos e literários que agitavam as universidades portuguesas nos anos 60. Essa vivência académica consolidou-lhe a consciência crítica e a convicção de que a cultura era um instrumento essencial na emancipação dos povos colonizados.

Iniciou a carreira como delegado do Ministério Público e juiz em Angola, num período marcado pelas transformações sociais que antecederam as independências africanas. Com a independência de Cabo Verde, regressou ao país para integrar os primeiros governos, exercendo funções como secretário de Estado, ministro e embaixador junto da República Portuguesa, da República Popular de Angola e dos governos de São Tomé e Príncipe, Zâmbia, Moçambique e Zimbabué. Sempre promoveu a imagem e os interesses culturais do país, com uma visão de diplomacia profundamente ligada à cultura como expressão da identidade nacional. Em 1986, participou na conferência que lançou as bases do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, defendendo a pluralidade linguística e o contributo das pequenas nações para a lusofonia.

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Ao longo da sua carreira pública, Corsino demonstrou que a defesa da cultura podia andar de mãos dadas com a política, sem se perderem a integridade nem a visão ética.

Pioneiro de uma estética insular

Foi na literatura, porém, que a sua marca se tornou mais profunda. A sua obra distingue-se pelo carácter inovador, pela força das imagens e pelo lirismo rigoroso. A trilogia Pão & Fonema (1974), Árvore & Tambor (1986) e Pedras de Sol & Substância (2001), a que se junta a antologia A Cabeça Calva de Deus, abriu novos caminhos para a poesia cabo-verdiana. Corsino transformou a geografia e a experiência das ilhas em metáforas universais de pertença, luta e esperança. Os seus livros afirmavam-se africanos e insulares, mas dialogavam com a modernidade literária e com os dilemas das literaturas pós-coloniais.

Pão & Fonema, publicado ainda sob censura, tornou-se manifesto de afirmação da identidade crioula, conjugando lirismo e consciência social. Circulou clandestinamente em círculos militantes e conquistou críticos atentos à literatura africana. Corsino mostrou que um poema podia ser, ao mesmo tempo, beleza, crónica e bússola: “a poesia não é apenas espelho, é bússola”. E para muitos, as suas palavras continuam a orientar caminhos de pertença e reinvenção identitária.

Traduzido em várias línguas e recitado em festivais internacionais, projectou Cabo Verde no mapa literário mundial. Em conferências em Paris, Dakar, Lisboa ou São Paulo, o seu nome surgia como exemplo de como a língua portuguesa pode ser reinventada a partir das margens. Em 2014, a sua obra foi tema de um colóquio na Sorbonne, em Paris, que reconheceu a sua importância como um dos grandes criadores poéticos do Atlântico.

Em 2013, fundou a Academia Cabo-verdiana de Letras, tornando-se o seu primeiro presidente. Pouco antes de falecer, foi distinguido com o Grande Prémio Literário Vida e Obra, consagrando um percurso singular.

Um legado que persiste

Uma década após a sua morte, a obra de Corsino Fortes continua actual. É estudada em universidades, recitada em escolas e celebrada em programas culturais. Na diáspora, em Lisboa, Boston ou Roterdão, os seus versos permanecem elo de pertença para as comunidades cabo-verdianas. São também lidos por uma nova geração de escritores e investigadores, que o reconhecem como precursor de uma literatura comprometida, sem perder a densidade estética.

O seu nome designa hoje ruas, praças, auditórios e bibliotecas nas ilhas. No Mindelo, a biblioteca municipal mantém uma sala com manuscritos, fotografias e edições das suas obras. Os seus poemas figuram em antologias escolares em Portugal e no Brasil, reforçando o valor pedagógico da sua escrita para novas gerações. O seu trabalho é igualmente citado nos estudos sobre literaturas pós-coloniais e modernidade africana, ao lado de nomes como Agostinho Neto, Noémia de Sousa e José Craveirinha. Recitais, concursos e colóquios promovidos por escolas, associações culturais e autarquias continuam a manter viva a memória da sua obra, agora redescoberta também por um público mais jovem.

Este décimo aniversário não é apenas um marco de saudade: é também um convite a reler a sua obra, a recitar os seus versos e a viver a utopia que sempre defendeu. Corsino Fortes não deixou um epitáfio, mas um caminho – de dignidade, sonho e generosidade. E hoje, recordando-o como ele próprio gostava de se despedir, dizemos-lhe: un abroçe na boca d’coraçon.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,25 jul 2025 11:41

Editado porSara Almeida  em  25 jul 2025 12:01

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