Entre Likes e Linchamentos: O Desafio da Democracia Cabo-Verdiana

PorLuís Carlos Silva,11 ago 2025 11:54

​Há dias que deveriam ficar gravados na memória coletiva como pontos de viragem. O lançamento do projecto do novo Hospital Central de Cabo Verde é um desses dias. O primeiro hospital a ser construído de raiz desde a independência, um investimento histórico que promete transformar o nosso sistema de saúde, ampliar valências, salvar vidas e oferecer esperança onde tantas vezes houve muita espera.

Um momento para nos unirmos em torno do essencial, celebrar o futuro e reafirmar a capacidade que o país tem, hoje, autonomamente, de concretizar projetos estruturantes.

Mas a sociedade em que vivemos tem outra cadência, dominada pelo imediatismo, onde as notificações, likes e polémicas instantâneas valem mais do que o silêncio da reflexão.

Neste caso, uma peça jornalística abriu o atalho para o desvio do essencial e transformou o momento histórico em espetáculo e ruído. Para isso, bastou a peça sugerir que o Primeiro-Ministro fugia da comunicação social e que este seria o “terceiro lançamento” do hospital, para que o essencial cedesse espaço ao acessório.

Da notícia, saltou-se para o julgamento sumário. E, como sempre, o tribunal das redes sociais não conhece prudência. A jornalista foi alvo de insultos violentos e humilhações públicas, ao qual seguiu um coro de indignação. Não é preciso concordar com a peça ou com a sua intencionalidade, para reconhecer: isto é inaceitável. A crítica e o escrutínio, mesmo quando tendênciosas, são pilares da democracia; o linchamento digital, pelo contrário, corroi-a.

É aqui que precisamos de firmeza moral: a indignação é legítima, mas ela não pode ser seletiva. Hoje foi uma jornalista. Ontem, amanhã, e quase sempre, serão os políticos, que vivem num permanente pelotão de fuzilamento digital. Não se debate argumentos, ou ideias, mas sim o mensageiro. O espaço público cabo-verdiano tornou-se um campo minado por microagressões, onde se confunde liberdade de expressão com licença para ofender.

O cidadão Hélio Varela resumiu o seu sentimento em duas palavras: “maldita política”. Mas talvez a questão seja mais profunda: não é a política que é maldita, ela reflete as dinâmicas sociais do nosso tempo, muitas vezes marcadas pelo ruído, indignações instantâneas e julgamentos apressados. Pelo que culpar apenas a política é insuficiente, é preciso olhar para o todo, para o ambiente em que a política existe. Desintoxicar a política exige, antes de mais, desintoxicar a sociedade, e isso só acontecerá se assumirmos um compromisso coletivo com a verdade, com a serenidade e com o respeito mútuo.

Foi neste ambiente de ruído que se seguiu o debate do Estado da Nação, o momento maior da democracia parlamentar. Em vez de o país mergulhar na análise serena do que foi dito, o pós-debate foi dominado por um coro de críticas aos deputados, acusando-os de não estarem à altura das responsabilidades que o mandato lhes confere. Este episódio encaixa-se no mesmo ciclo de toxicidade: indignação instantânea, julgamento público e ataques aos representantes da democracia.

É aqui que se revela um risco maior: quando o debate público se concentra apenas em atacar os eleitos sem propor soluções alternativas enfraquece-se a própria democracia e abre-se espaço para o populismo e a demagogia. A democracia assenta num princípio sacrossanto: a universalidade da representação. Já houve um tempo em que apenas os “lordes” e elites podiam ser eleitos; hoje, todos têm capacidade eleitoral ativa e passiva — votar e ser votado. O sistema é claro: o eleito responde perante os eleitores, se não durante o mandato, certamente no momento da renovação.

Se os cidadãos consideram que os seus representantes não estão à altura, têm ferramentas para exigir mudança: podem pressionar os partidos por critérios mais rigorosos na escolha dos candidatos e podem punir ou premiar nas urnas. No final, como é óbvio, será sempre os partidos a escolhem os candidatos, mas fazem-no com base no potencial de voto que acreditam ser a indicação da sociedade, e o Parlamento acaba, assim, por ser um reflexo da sociedade que o elegeu.

É por isso que culpar apenas a política é insuficiente. Ela é o reflexo de uma sociedade que precisa de reencontrar equilíbrio, substituindo o ruído pelo debate, o julgamento instantâneo pela reflexão crítica e que, muitas vezes, se distancia do essencial.

E, no meio deste vendaval, esquecemo-nos de onde começamos. Como lembrou o cientista Cabo-Verdiano, Jay Querido, numa publicação nas redes sociais, “deveríamos estar a discutir o que realmente transforma vidas”: o hospital, o investimento histórico e a estratégia de saúde pública que ele representa. O projecto prevê duas fases: a primeira, orçada em 180 milhões de dólares (16.898 milhões de escudos), e a segunda, em mais de 68 milhões de dólares (6.384 milhões de escudos). Para o seu funcionamento, estima-se um custo anual de 36,6 milhões de dólares (3.436 milhões de escudos) na primeira fase e mais de 20 milhões de dólares (1.877 milhões de escudos) na segunda.

São números que revelam a dimensão e a responsabilidade deste projecto. Grandes obras têm ciclos longos, feitos de avanços e recuos. O que importa não é o número de lançamentos, mas a solidez da obra que ficará. O novo Hospital Central de Cabo Verde é mais do que cimento e vidro: é um gesto de futuro, um compromisso com a vida, um salto civilizacional para um país pequeno, mas ambicioso.

O ruído vai passar. Mas ficou um debate importante por fazer.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de A de 2025.

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Autoria:Luís Carlos Silva,11 ago 2025 11:54

Editado porAndre Amaral  em  11 ago 2025 11:54

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