Têm o poder de contenção dos extremos e de incentivar a convergência nos objectivos comuns da colectividade. A reacção rápida e engajada da Nação e das suas comunidades emigradas à catástrofe de 11 de Agosto que abalou S.Vicente foi um sinal claro de que em Cabo Verde está bem vivo esse sentido do colectivo nacional na sua expressão de fraternidade e de crença no seu futuro.
Pode-se considerar isso como um indicador forte da resiliência face às adversidades. De facto, recentemente durante a pandemia da Covid-19 esse sentido de pertença tinha-se revelado com toda a sua pujança e outra vez face a um desastre maior voltou a manifestar-se de forma inequívoca. É de notar que aparentemente a pandemia, ao ser uma oportunidade para mostrar solidariedade, acabou por reforçar os laços entre o país e as suas comunidades no estrangeiro, avaliando pelo aumento progressivo das remessas dos emigrantes nos anos seguintes. Isso pode significar que o aumento do afecto e da confiança e da consciência da Nação já se apresenta como um significativo amortecedor a eventuais choques externos naturais ou outros que importa conservar e aprofundar.
Outrossim, o país pode e deve potenciá-lo para manter a sociedade mais coesa e mais motivada e focada no crescimento e no desenvolvimento particularmente quando, a exemplo de outras democracias, Cabo Verde está sujeita a forças políticas e sociais fracturantes e divisivas. Na falta de um respaldo suportado no cultivo de um sentido de pertença ao colectivo nacional, corre-se o risco de, ao se enfraquecerem as instituições e a ordem democrática, se abrir caminho para soluções autoritárias e restrições graves dos direitos fundamentais. Já está a acontecer noutros países democráticos, em alguns já com um grande avanço em direcção a regimes autoritários como são os casos dos Estados Unidos e da Hungria e outros como Itália, Polónia, França, Alemanha e Portugal, com equilíbrios precários, mas com tendência para o crescimento de forças iliberais,
Aliás, as forças extremistas crescem muitas vezes em reacção ao que consideram excessivo individualismo, políticas identitárias e ameaças do multiculturalismo. O ambiente actual, dominado pelas redes sociais que amplifica a expressão individual e o posicionamento identitário e promove cosmopolitismo, também permite com recurso a algoritmos sofisticados mobilizar paixões e explorar medos e ressentimentos com base no nacionalismo. Ou seja, as plataformas digitais ajudam a promover o narcisismo ao mesmo tempo que disponibilizam os meios para a criação de bolhas de opinião onde turbas furiosas, motivadas muitas vezes por sentimentos antisistémicos e antidemocráticos, cancelam ideias, criam fake news e forjam realidades alternativas. Já há quem vislumbre um mundo em que quem domina as plataformas de facto governa e deixa para a maioria da população o entretenimento e a satisfação disponibilizada pela realidade virtual.
Em Cabo Verde também as redes sociais estão disponíveis e fenómenos que fazem lembrar o que se passa em outros países já acontecem. Já se notam manifestações de narcisismo pessoal e político com efeito nas instituições. O protagonismo pessoal tende a sobrepor-se, enfraquecendo a função e a imagem institucional. Os checks and balance do sistema político são enfraquecidos com a aceleração da menorização do papel dos órgãos colegiais (parlamento, governo, câmaras municipais) e o crescente protagonismo do presidente da república, do primeiro-ministro, dos presidentes das câmaras municipais. Bolhas de opinião são criadas com a ajuda dos algoritmos das plataformas que não poucas vezes criam uma ilusão de influência que a realidade não corrobora. Sentimentos anti-sistémicos em conflito com o pluralismo e a democracia encontram expressão e nova vida nas políticas identitárias e na criação de fake news e de realidades alternativas.
Não há em Cabo Verde questões fracturantes como a imigração, o racismo e a xenofobia e conflitos religiosos que podiam ser explorados por forças políticas, a exemplo do que se passa na Europa com a extrema-direita. Não deixam, porém, de subsistir, em novas encarnações, as velhas noções cabralistas divisivas que punham em diferentes categorias população, povo e Partido com os seus melhores filhos. Justificam os epítetos pejorativos de vendedores da terra, de anti-patriotas e de luso-tropicalistas ou macaronésios aplicados aos adversários. Estão por trás da polémica à volta do monumento à Liberdade e Democracia nos 35 anos da II República, assim como, em 2018, foram contra a proposta da câmara municipal de relocalizar a estátua de Amílcar Cabral na rotunda do Homem de Pedra.
Ao manter viva uma ideologia e uma narrativa histórica datada, alimentam-se divisões à volta do crioulo e da identidade cabo-verdiana, e dá-se conforto a sentimentos anti-sistémicos na procura de justificação da ditadura do partido único. Uma última encarnação do fenómeno desse tipo de divisionismo vê-se na postura antielitista do actual presidente do PAICV, Francisco Carvalho. Assumindo-se como líder dos “abandonados” pelas elites que governaram o país durante décadas, conseguiu capturar a liderança desse partido não obstante a feroz resistência dos seus dirigentes históricos. Posicionando-se agora como candidato a primeiro-ministro, o mais provável é que continue na mesma linha populista e antielitista que nega o impacto do crescimento económico na população e contende que os benefícios do país vão apenas para uma minoria.
O tipo de confronto político marcado por divisões bloqueadoras de tipo de diálogo entre partes em praticamente todas as matérias em disputa obriga a um tacticismo político que limita o alcance das políticas e da governação. O resultado é que em Cabo Verde provavelmente mais do que em qualquer momento anterior nos últimos meses tem-se a impressão de se estar a viver em permanente sobressalto. Há acontecimentos que realmente causam alarme como foram as chuvas torrenciais e as enxurradas que resultaram em mortes e perdas materiais avultadas. Há outros menos usuais e de menor impacto com destaque para as greves sucessivas ou anúncios de greve e os problemas constantes nos transportes aéreos e marítimos que contribuem para alimentar um desassossego difuso na sociedade. Sem o respaldo de uma consciência colectiva solidária e confiante, o confronto político permanente, a actuação dos mídia, cada vez mais influenciada pelas redes sociais, e a conectividade permanente, garantida pelas plataformas digitais, só agravam a situação.
Urge reequilibrar o país para que esteja realmente na posição de, com diálogo aberto e democrático, encontrar solução para os seus problemas. Para isso é preciso potenciar o sentimento profundo de pertença que o cabo-verdiano canaliza como solidariedade e crença no futuro sempre que Cabo Verde enfrenta uma crise. Para mobilizar esse capital que está na base da resiliência do país há que, porém, ultrapassar definitivamente as divisões impostas pela história para voltar a ser a nação que se forjou no limite, sobrevivendo a fomes, ao isolamento e ao abandono. Uma nação que não se define como vítima de ninguém e sempre acreditou que nas ilhas ou em qualquer lugar para onde emigrou o futuro está ao alcance das suas mãos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1240 de 3 de Setembro de 2025.