Vai longe a euforia dos fins dos anos oitenta e de grande parte da década de noventa em que a vitória da democracia e o reconhecimento universal dos direitos humanos pareciam imparáveis.
Em 2025 dois eventos internacionais a assinalar o dia com temas de “Um mundo virado de cabeça para baixo: democracia e inclusão numa era de insegurança” e “Democracia em risco: como podemos reavivá-la” dão conta do estado actual da democracia. Em boa parte deste século e particularmente depois da crise financeira de 2007/2008 ficou evidente que a democracia tinha entrando numa crise múltipla. Tornaram-se notórios os sinais de uma crise de representação, de uma crise dos partidos políticos e de uma crise de confiança nas instituições. Sinais de fracturas profundas nas sociedades democráticas começaram a manifestar-se no discurso anti-elites, no ressentimento derivado da percepção do agravamento das desigualdades sociais e no medo incutido pela crescente imigração, aparentemente sem controlo.
A par disso, a potenciar sentimentos de desesperança, a reforçar a solidão e a alimentar a ilusão de realidades alternativas, assistiu-se a emergência das plataformas digitais e das redes sociais que criaram a possibilidade de inundar toda a gente de informação sem qualquer tipo de intermediação e de validação, ao mesmo tempo que tornava as pessoas vulneráveis a manipulações diversas. Com os algoritmos construídos pelas plataformas para suportar o negócio e disponibilizar gratuitamente o acesso às redes sociais, bolhas mediáticas podiam ser criadas e exploradas por forças políticas emergentes, abrindo o caminho ao populismo, à contestação dos partidos e da democracia liberal e à erosão de confiança nas instituições. E é precisamente o que a partir da segunda década deste século tem vindo a acontecer, em simultâneo com a implosão dos partidos do centro democrático e o crescimento de forças extremistas, especialmente da extrema-direita.
Um outro desenvolvimento que tem contribuído para a erosão da democracia resulta do exacerbar do individualismo que, conjuntamente com o extremar das lutas identitárias e um processo continuo de vitimização, acaba por pôr em causa de várias formas (discriminação, cancelamento) os princípios liberais de liberdade e de igualdade. Uma outra consequência é a diluição do sentido de pertença que para além do impacto individual ao nível da saúde mental ainda pode contribuir para enfraquecer a fraternité/solidariedade essencial para a coesão do colectivo nacional. Daí é um passo para o surgimento, em reacção, do populismo nacionalista e anti-elites, por regra personificado por líderes narcisistas. Percebe-se a conexão no apelo a causas nostálgicas de passados gloriosos, no exercício autocrático de poder e na exigência de devoção que ajuda os seguidores a evitar o niilismo e os convida a ser parte de uma massa em crescendo e ganhadora.
A conjugação desses factores em vários países democráticos já levou a mudanças significativas no espectro político com a ascensão de forças mais à direita e a deslocação de políticas para posições iliberais. Nota-se a tendência para a compressão dos direitos fundamentais em particular da liberdade de expressão e de imprensa, para o enfraquecimento do princípio de separação dos poderes e para o recrudescer dos ataques ao poder judicial. Nos Estados Unidos, a mais velha das democracias e líder da ordem liberal e democrática que saiu da segunda guerra mundial, a afirmação, a uma velocidade estonteante, de uma presidência imperial desequilibrou o sistema de “checks and balance”.
A diminuição do papel do Congresso tem sido acompanhada da contestação sistemática do poder judicial nos limites de uma crise constitucional, por enquanto evitada pelo quase total alinhamento do supremo tribunal com as pretensões do presidente. Em simultâneo, procedeu-se à progressiva militarização da segurança pública, ao enfraquecimento do estado regulador, do estado administrativo e do estado social, a ataques às universidades e às instituições de saúde pública e a intimidação dos órgãos de comunicação social. Para com o presidente a relação aparentemente instituída é uma mistura de lisonja, demonstração de vassalagem e algum poder de encaixe para eventuais humilhações aplicável a todos, desde os gigantes do mundo dos negócios e das tecnologias até aos Chefes de Estado e de governo dos outros países. Não é à toa que muitos observadores consideram a deriva autocrática que a América vem protagonizando nos últimos nove meses como o acontecimento globalmente mais marcante desde a queda do comunismo e do fim do império soviético em 1989-90.
O exemplo que vem daí não deixará de ter efeito no resto do mundo e em particular nas democracias. Haverá tentativas de imitação, algumas de rejeição e outras ainda de acomodamento. A verdade é que a democracia globalmente ficará enfraquecida e já não se pode contar com uma vontade colectiva como a que deu origem à instituição do Dia Internacional da Democracia para incentivar a consolidação da democracia no mundo. E é uma grande perda para o progresso da humanidade porque, entre outras razões, como dizia o filósofo americanoReinhold Niebuhr, “a capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária”.
É neste ambiente mundial de recessão, se não de regressão democrática, que Cabo Verde dentro de oito meses vai realizar eleições legislativas. Também aqui no país os efeitos da erosão democrática são claramente sentidos tanto na sociedade como nas instituições e nos partidos políticos. Conter e pelo menos não a agravar devia ser uma preocupação central dos dois partidos do arco da governação e também de toda a sociedade. Será difícil não cair na tentação de continuar a fazer o mais do mesmo e a manter-se o excesso de protagonismo dos políticos, a se servir das redes sociais para canalizar sem filtro ou contexto todas as indignações, a ter os média a amplificar as redes sociais e a ver reivindicações laborais e corporativas desembocar em greves e paralisações.
O embate eleitoral que se anuncia será dos mais complicados para o país, tanto pela actual conjuntura política internacional penosa para as democracias como pela situação em que se encontram os dois grandes partidos. O partido no governo estará a terminar dez anos de mandato com o desgaste normal de governação exacerbado por crises e choques externos e a ser responsabilizado por disfuncionalidades em sectores importantes como os transportes. E o facto de, na sequência da derrota nas autárquicas não se ter aberto a um debate interno e com a sociedade vai-lhe custar na apresentação de soluções inovadoras.
Quanto ao maior partido da oposição ainda sob o efeito da luta pela liderança interna, que configurou uma verdadeira operação de captura da organização, não há sinais de uma visão nova dos problemas do país. Para além do discurso populista que já se viu que pode ganhar eleições, mas não garante governação competente, não se vislumbra senão a conquista do poder como motivação principal. Infelizmente, para o país que precisa acelerar o seu crescimento e desenvolvimento, essas perspetivas não auguram maior dinâmica económica. Há que, no entanto, garantir democracia necessária para impedir que prevaleça a injustiça.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.