Confiança Institucional - O Compromisso que Cabo Verde Precisa Renovar

PorPaulo Veiga,13 out 2025 8:58

A confiança nas instituições, esse cimento invisível que sustenta a nossa democracia, tem sido alvo de sucessivos ataques. É cada vez mais urgente enfrentá-los com coragem e lucidez. Porque, sem confiança institucional, não há democracia que resista. E Cabo Verde merece resistir, merece renovar-se, merece acreditar.

A confiança nas instituições, esse cimento invisível que sustenta a nossa democracia, tem sido alvo de sucessivos ataques. É cada vez mais urgente enfrentá-los com coragem e lucidez. Porque, sem confiança institucional, não há democracia que resista. E Cabo Verde merece resistir, merece renovar-se, merece acreditar.

Hoje, com a abertura de um novo ano parlamentar, vamos assistir a mais do que uma cerimónia, vamos iniciar um novo ciclo de oportunidades. Oportunidades para repensar o modo como as instituições se apresentam, se explicam e se relacionam com os cidadãos. Uma oportunidade para restaurar a credibilidade, a dignidade e o sentido de pertença que devem estar no coração de qualquer democracia.

Num tempo em que os cabo-verdianos exigem mais clareza, mais justiça e serem mais ouvidos, torna-se imperativo que as instituições deixem de ser apenas estruturas formais e passem a ser espaços vivos de cidadania.

Quando o discurso político mina a democracia

No livro “How Democracies Die”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt alertam para o risco de uma democracia que morre em silêncio ou aos gritos, sobretudo quando esses gritos vêm de quem devia protegê-la. Este é o verdadeiro perigo do populismo, um populismo que usa a democracia como palco e não como compromisso. Um populismo que transforma instituições em adereços de comício em vez de pilares de governação.

Esse risco deixa de ser teórico quando, numa Assembleia Municipal, um representante eleito afirma que “a justiça se prepara para assaltar a Câmara” e que está “preparado para eles”. Não se trata de uma metáfora infeliz, trata-se de uma inversão perigosa da lógica democrática. A justiça é tratada como inimiga, como se os tribunais fossem instrumentos de perseguição e não de equilíbrio institucional. E quando se normaliza esse tipo de discurso, mina-se a autoridade da justiça e, com ela, a confiança coletiva.

A democracia não é apenas um sistema de regras, é uma cultura de respeito mútuo entre poderes. E essa cultura começa no discurso. Quando se banaliza a ideia de que os órgãos de soberania são obstáculos à ação política, semeia-se desconfiança, polarização e desordem. Pior, ensina-se aos cidadãos que a lei é maleável, que a autoridade é negociável, e que o poder se sobrepõe ao princípio. Essa pedagogia política é tóxica, e os seus efeitos são duradouros.

“A casa dividida contra si mesma não pode subsistir.” — Abraham Lincoln

A frase de Lincoln, proferida num dos momentos mais turbulentos da história americana, ecoa com inquietante atualidade em Cabo Verde. Uma democracia não se sustenta quando os seus próprios pilares são corroídos por dentro, não por forças externas, mas por vozes internas que deveriam defendê-la. E esse fenómeno não se limita ao plano local. Quando representantes nacionais deslegitimam instituições, bloqueiam processos ou instrumentalizam o Estado de Direito, o impacto é sistémico. A erosão da legitimidade democrática começa na linguagem, alastra-se pelas práticas e acaba por contaminar a confiança pública.

Há atores políticos que se apoiam na democracia para legitimar a sua presença, mas que não a protegem quando mais importa. Usam o voto como escudo, mas esquecem que o voto é apenas o início do compromisso democrático, não o seu fim. Ser eleito não é uma licença para desrespeitar instituições, é uma responsabilidade acrescida para as fortalecer. E quando essa responsabilidade é ignorada, a casa começa a dividir-se. E como Lincoln avisou, uma casa dividida não subsiste.

A paralisia institucional e o bloqueio dos mandatos

Outro sinal preocupante é a persistente demora na renovação dos mandatos dos órgãos externos ao Parlamento. O novo ano parlamentar começa, mas os acordos para os cargos de nomeação continuam por fechar, apesar de os mandatos já terem ultrapassado largamente os prazos legais. Esta inércia transmite uma imagem de paralisia institucional e compromete a legitimidade dos próprios órgãos.

A renovação atempada dos mandatos não é uma mera formalidade, é um sinal de vitalidade democrática. É um gesto de respeito pelo Estado de Direito, pela previsibilidade institucional e pela confiança dos cidadãos. Quando os cargos permanecem ocupados para além do tempo legal, a mensagem que se transmite é de desorganização, de falta de consenso e, por vezes, de conveniência política.

Embora, possamos ser tentados a concluir que esta paralisia é exclusiva do Parlamento, este impasse provocado não se limita à Casa da Democracia. O bloqueio institucional estende-se também à relação entre o Presidente da República e o Governo, numa disputa táctica que parece servir mais os interesses partidários do que o bem comum. Esta falta de entendimento tem consequências sérias e concretas, uma consequência onde cargos fundamentais como o de Procurador-Geral da República continuam sem nomeação, mesmo quando o titular atual já ultrapassou largamente o limite do seu mandato. Esta paralisia, alimentada por cálculos políticos, compromete a funcionalidade do sistema judicial e transmite aos cidadãos a ideia de um Estado que hesita, que retarda e que falha no essencial, ou seja, servir Cabo Verde.

Concluo, assim, que a persistência no bloqueio da renovação de mandatos, em nome de cálculos partidários e estratégias eleitorais, é uma afronta ao espírito republicano. Quando os interesses de partido se sobrepõem ao interesse nacional, o que está em causa não é apenas um atraso administrativo, é uma quebra de compromisso com os cabo-verdianos. Quem não coloca os cidadãos como prioridade única e inegociável do seu mandato, não merece esse mesmo mandato. A democracia exige mais do que presença, exige serviço. E o serviço público começa por respeitar o tempo, a legitimidade e a confiança das instituições que o sustentam.

Os pilares da confiança: transparência, justiça e cidadania ativa

A base deste artigo é uma proposta de reflexão sobre os pilares da confiança institucional. E, na minha visão, são três: transparência nos processos, eficácia na justiça e abertura à cidadania ativa.

A transparência não é apenas publicar relatórios ou divulgar decisões. É garantir que os processos são compreensíveis, que os critérios são claros e que os cidadãos sabem como e por que razão determinadas decisões são tomadas. É permitir que o escrutínio público seja uma prática saudável e não uma ameaça.

Acredito, e penso que todos concordamos, que não se comunica bem. Mas, acima de tudo, temos de fazer melhor.

A justiça eficaz é aquela que responde com celeridade, com equidade e com independência. Não pode ser seletiva, nem refém de interesses políticos. Tem de ser um espaço de equilíbrio, onde todos, governantes e governados, encontram proteção e responsabilização.

Finalmente, a cidadania ativa é o motor da democracia. Não basta convocar os cidadãos para votar. É preciso envolvê-los na construção das políticas públicas, na fiscalização das decisões e na definição das prioridades. Uma democracia madura é aquela que escuta, que acolhe e que valoriza a participação.

Quando se fala em justiça, mas se desrespeita o poder judicial; quando se fala em democracia, mas se bloqueia a renovação dos mandatos; quando se fala em cidadania, mas se ignora a voz dos cidadãos, estamos a construir uma democracia de fachada, e não de substância.

Para isso é fundamental começar por reconhecer que as instituições não são inimigas, são instrumentos de serviço público. São espaços de construção coletiva, e merecem ser tratadas com respeito, com responsabilidade e com visão. É preciso recuperar a coerência, é preciso recuperar a essência, é preciso recuperar o que esteve na base da nossa história democrática: servir o povo.

Neste novo ano parlamentar devemos ambicionar mais do que uma sequência de sessões e debates. Este deve ser um tempo de renovação política, institucional e ética. Cabo Verde precisa de uma política que inspire. Que mobilize. Que una. E isso só será possível se os protagonistas políticos colocarem o interesse nacional acima das conveniências partidárias. Se forem capazes de reconhecer que a democracia não se fortalece com confrontos estéreis, mas com compromissos corajosos. Nunca nos devemos esquecer que a confiança institucional não se decreta, constrói-se. E essa construção exige tempo, exige trabalho e exige verdade.

Um farol para o futuro

Termino com um apelo. Um apelo à maturidade democrática. Um apelo à responsabilidade institucional. Um apelo à coragem política. Cabo Verde tem tudo para ser um farol democrático na região (e no mundo). Tem uma história de estabilidade, uma sociedade civil vibrante e uma juventude que quer participar. No entanto, para que esse farol brilhe, é preciso que as instituições estejam à altura. É preciso que sejam espaços de dignidade, de pertença e de confiança.

O novo ano parlamentar é uma oportunidade e espero (e trabalho) para que não seja desperdiçada. Desejo que seja o início de um ciclo de renovação, de compromisso e de esperança. E é com esse pensamento que recordo Thomas Jefferson e a sua frase “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, para recordar a todos a defesa da democracia não é exclusiva dos políticos, ela cabe a todos nós. Ela nasce em cada casa, em cada vila, em cada local onde exista sangue de Cabo Verde. Por isso lutemos, lutemos e sonhemos, porque a democracia cabo-verdiana merece mais, e os cidadãos também.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025.

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Autoria:Paulo Veiga,13 out 2025 8:58

Editado porAndre Amaral  em  13 out 2025 8:58

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