Era a nossa forma de participar, de viver a emoção por interposta pertença, porque ver Cabo Verde entre os grandes era um sonho distante, um desejo legítimo, mas ainda fora do nosso horizonte de possibilidades.
Desta vez é diferente. Desta vez não teremos de escolher. Desta vez vamos ser Cabo Verde.
E talvez o mais relevante neste apuramento não seja apenas a alegria que provoca, mas o que revela sobre o país que somos e o caminho que temos vindo a construir. Chegar a um Mundial não é um acaso. É o resultado de um processo, de um conjunto de decisões e de uma cultura institucional que privilegia a organização, a continuidade e a estabilidade. É, no fundo, a prova de que as vitórias (desportivas ou nacionais) começam sempre muito antes do apito final.
O apuramento de Cabo Verde é, antes de tudo, a consagração de um modelo que tem mostrado resultados também noutras modalidades. O andebol masculino já soma duas presenças consecutivas em Campeonatos do Mundo, o feminino também alcançou a elite, o basquetebol também chegou ao mundial e o boxe deu-nos, com David Tavares, a primeira medalha olímpica da nossa história. Nada disto é coincidência. É a consequência de um país que vem consolidando estruturas, capacitando federações, fortalecendo a governação e criando condições para que o talento floresça de forma organizada e sustentável.
O futebol, naturalmente, reflete essa mesma lógica. A Federação Cabo-Verdiana de Futebol tem trabalhado com consistência e visão estratégica, investindo em formação, planeamento e estabilidade. A escolha de Bubista, a paciência em mantê-lo e o apoio coerente ao projeto desportivo são expressão de maturidade institucional e de confiança nos processos. Esta estabilidade permitiu a consolidação de uma equipa que é, em si mesma, o retrato da nação: diversa, resiliente e unida. Cabo Verde é um país arquipelágico, geograficamente fragmentado, mas social e culturalmente coeso. E esta seleção mostra que a distância pode ser superada quando o propósito é comum.
Também aqui a Diáspora desempenhou um papel essencial. Onze jogadores em campo representam mais do que um território: representam uma identidade cultural. A história de Pico Lopes, contactado através do LinkedIn, é um exemplo simbólico de como as novas formas de ligação permitem reforçar os laços entre o país e os seus talentos espalhados pelo mundo. É uma metáfora de um Cabo Verde moderno, que usa as redes como pontes e transforma a dispersão geográfica numa vantagem competitiva. O mesmo espírito se encontra noutros setores, como o da saúde, com o extraordinário trabalho da Associação dos Médicos Cabo-Verdianos nos Estados Unidos, que todos os anos organiza missões médicas, transfere conhecimento e reforça a qualidade do sistema nacional de saúde. Estes exemplos mostram que a Diáspora é muito mais do que um prolongamento afetivo: pode ser uma extensão funcional da Nação, uma reserva de competência e de compromisso que amplia a capacidade do país e reforça a sua soberania.
O impacto desta qualificação ultrapassa, portanto, a dimensão desportiva. É simbólico, institucional, económico e cultural. Reforça o orgulho nacional, mas também projeta Cabo Verde no mundo como um país estável, coerente e confiável. Num tempo em que a imagem internacional dos países se constrói tanto pela política como pela cultura e pelo desporto, Cabo Verde afirma-se como um caso de sucesso em África: uma democracia sólida, com instituições previsíveis e uma sociedade que acredita na regra, no mérito e na responsabilidade. O Mundial será, por isso, uma plataforma global para a nossa marca-país, com impactos diretos no turismo, na confiança dos investidores e na perceção de credibilidade que sustenta a nossa economia.
Esta vitória é também um lembrete de que o verdadeiro desenvolvimento é sempre o resultado de uma combinação entre método e fé, entre instituições que funcionam e pessoas que acreditam. Cabo Verde tem provado que a sua força está precisamente na capacidade de transformar limites em oportunidades, de fazer muito com pouco, de resistir à tentação do improviso e de valorizar a persistência. O apuramento para o Mundial é a celebração de um percurso: o de um país que soube construir resultados com trabalho, paciência e visão.
Mas esta conquista deve ser também um marco de aceleração. É tempo de profissionalizar ainda mais a gestão do futebol, modernizar a comunicação e abrir novas fontes de financiamento. A Federação tem aqui uma oportunidade concreta e urgente: transformar o entusiasmo em estrutura e o orgulho em sustentabilidade. Um bom começo seria profissionalizar o merchandising da seleção — criar uma linha oficial de produtos e colocá-los à venda nas plataformas digitais. Isso não é apenas uma forma de gerar receitas próprias, mas também um meio de medir e mobilizar a dimensão da nossa Diáspora. Em todo o mundo há cabo-verdianos dispostos a usar a camisola da seleção com orgulho. Falta apenas que ela esteja disponível para a compra.
Esta é uma dimensão ainda pouco explorada, mas essencial. O futebol não é apenas um jogo, é também uma poderosa plataforma económica e simbólica. Cada camisola vestida é uma afirmação de pertença, uma demonstração de identidade e uma forma de projetar o país no mundo. Ao investir neste domínio, a Federação estará a reforçar o elo entre a Seleção e os cabo-verdianos, dentro e fora das ilhas, ampliando o alcance da marca “Cabo Verde” e consolidando a base que sustenta o próprio sucesso desportivo.
Desta vez vamos ser Cabo Verde. E ao sermos Cabo Verde no Mundial, reafirmamos a melhor versão de nós próprios: um povo de ilhas e de mundo, que vence pela força das suas instituições, pela qualidade do seu talento e pela firmeza da sua esperança. As vitórias, como esta, não acontecem por acaso. Constroem-se. E o que esta qualificação prova é que, quando há visão, método e confiança, até o sonho se torna realidade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1246 de 15 de Outubro de 2025.