Não obstante a incontornável diversidade, abertura e riqueza da música cabo-verdiana constituída por uma expressiva variedade de géneros e estilos regionais e nacionais, não se conhecem, até agora, estudos que caraterizem e definam os traços de personalidade associados aos principais atores musicais, sobretudo os compositores e intérpretes (cantores e instrumentistas) que, também, enformam o respetivo “campo musical”, na perspetiva de Bourdieu (1996). Seja como for, o músico, produto e agente dinâmico da sociedade cabo-verdiana, que vivencia relações sociais, culturais e emocionais e produz significações, através da música, transporta consigo traços de personalidade positivos e negativos incorporados, por via dos processos de socialização, e desempenha, concomitantemente, uma multiplicidade de papéis.
Seguramente, não há uma personalidade única que caraterize o músico cabo-verdiano, tanto é certo que a sua natureza heterógena e complexa é definida e moldada em razão dos contextos sociais e artísticos em que se insere e da sua interação nos diversos meios sociais, à procura, em última análise, do necessário equilíbrio entre a sua esfera privada e familiar e o mundo externo do palco, o seu principal modo de vida. Na verdade, defende Silves Ferreira (2020), aquilo que “mais marca a vida do músico” é a forma como lida com esses dois mundos diferentes e consegue, no fundo, equilibrar esses dois padrões de vida complementares. Portador de uma identidade sociocultural peculiar, o músico, que é um indivíduo normal como qualquer outro, para lá dos aspetos positivos que o caraterizam, expressos através do seu altruísmo e do seu espírito de cooperação e solidariedade, tem traços paranoicos, narcisistas, reais ou potenciais, que configuram ou formatam o seu modelo de personalidade flexível, nas dinâmicas das suas relações interpessoais. Naturalmente, haverá aqueles que têm a consciência dos seus defeitos, procuram valorizar-se, são humildes, colocam-se na posição de servir, fazem-se aconselhar, enfim, a sua prática de vida é marcada por valores positivos como a solidariedade, o coletivismo e o respeito. No sentido contrário, há, porém, outros que, na sua interação social e no exercício da sua profissão musical, à volta de um mundo que eles próprios construíram, cultivam a vaidade pessoal, julgando “ter a consciência musical na barriga”, como afirmava um reputado músico da capital (2011), podendo, inclusive, levá-los a comportamentos individualistas, egoístas e egocêntricas que, quiçá, funcionam como mecanismo de defesa e terapia contra as suas próprias angústias e frustrações.
Em qualquer circunstância, seja músico, pintor, escritor ou qualquer criador, o artista, tendencialmente, considera o seu umbigo o centro do universo, embora haja poucos exageradamente modestos que não se pautem pela mesma postura ou padrão de conduta. O músico, que, também é artista, alimenta, de forma consciente ou não, algum egocentrismo, gosta do palco, gosta do show, que, de resto, lhe dá alguma visibilidade e prestígio social. Com efeito, no exercício da atividade musical no palco, defende um conhecido instrumentista sanvicentino (2020), não há “casos de humildade” entre os músicos cabo-verdianos, há, sim, “indivíduos que se mostram humildes, mas, no fundo, não o são”. Mesmo os poucos, que apregoam alguma humildade, remata o intérprete musical, “quando estão de instrumento na mão, num ensaio ou no palco, a sua atitude é completamente diferente, deixam de ser humildes e querem mandar uns nos outros”. (Ibidem).
Na música cabo-verdiana, há uma gama diversificada de comportamentos em razão, naturalmente, da personalidade do próprio músico, que varia entre os que na vida e no palco optam por uma postura mais discreta e reservada, diria humilde, e aqueles que se julgam e se posicionam no centro das atenções. Via de regra, a personalidade heterogénea do músico depende das circunstâncias contextuais de vida e do tipo de sujeito, havendo, por conseguinte, no campo musical, músicos mais abertos, mais disciplinados, mais organizados e, também, indisciplinados, em razão, como é óbvio, da sua relação com a atividade artística. Salvaguardadas as exceções, o artista e, em especial, o músico, preocupa-se consigo mesmo e, nalguns casos, tem traços narcisistas de personalidade relativamente comuns à atividade do palco. Essa caraterística de personalidade particularmente observada e mais evidente no músico (cantor e instrumentista) prende-se, de acordo com Manuel Faustino (2020), com o facto de a criação ser um ato extremamente isolado, isto é, normalmente, o criador isola-se, fecha-se sobre si mesmo, volta-se para si próprio e prefere a solidão, podendo levá-lo “a uma postura mais ou menos egocêntrica e narcisista e ao acentuar de traços narcisistas”. De facto, no processo de criação artística, o músico precisa, primeiro, de isolamento e, depois, de legitimação da sua obra pelo outro, numa eventual tensão que, na perspetiva do psiquiatra e compositor sanvicentino, poderá, eventualmente, concorrer para o reforço desses traços de personalidade. (Ibidem). Ou seja, nessa tensão entre o ato de criação e o reconhecimento ou legitimação da obra artística pelo público, o músico poderá revelar algum egocentrismo o qual se poderá configura como um traço central de transtorno de personalidade narcisista, se excessivo e patológico, nessa dinâmica interrelacional.
Conversando, a este propósito, com Teófilo Chante (2020), músico e compositor radicado em França e profundo conhecedor da realidade musical cabo-verdiana, alertava-me, com argumentos convincentes, que há músicos que têm o ego inflado, “muito grande, uma coisa doentia, não querem dar espaço a outros, preferem a visibilidade excessiva tanto no palco, quanto no estúdio da gravação, e fecham-se perante os outros”, em contravenção com o princípio básico da necessária interação na atividade musical. Todavia, há aqueles que, não sendo egocêntricos e não se encontrando no centro das atenções como estrelas, são colaboradores, na perspetiva do jornalista Fonseca Soares, “gostam e vivem pela pureza da música, produzem música a pensar nos outros e não em si próprios (…), nada têm a ver com o estrelado (…) enão pensam em retribuição monetária”. A questão de fundo não reside, no entendimento do psiquiatra santiaguense, Silves Ferreira (2020), tanto na manifestação do egocentrismo e do narcisismo do músico, de resto, incontornáveis na atividade artística, mas, tão-só nos limites em que esses fenómenos intrínsecos à sua profissão artística se manifestam. O músico cabo-verdiano, dito de outro modo, precisa, pela natureza da sua atividade profissional, conciliar e encontrar o necessário equilíbrio entre a sua esfera privada, sobretudo familiar, e a pública, dominada pelo palco, que condicionam a sua personalidade. Na prática, explicava-me a psicóloga Carla Estrela (2020), o músico cabo-verdiano vive, em simultâneo, duas vidas complementares e relativamente conciliáveis, “tem uma quase dupla vida”. Contudo, não podendo lograr esse equilíbrio primordial entre duas esferas distintas, adverte, por seu turno, o psiquiatra Silves Ferreira (2020), o músico, cuja personalidade é, também, marcada por duas identidades e duas vidas distintas e paralelas, corre um sério risco de se confrontar com problemas da natureza emocional, psicológica, social, cultural e relacional podendo, “em casos mais graves, ter verdadeiros problemas psiquiátricos”. Neste xadrez complexo, o público, que, muitas vezes, alimenta expetativas excessivamente elevadas, deve, pela sua centralidade, enquanto consumidor e legitimador do produto artístico, ter uma compreensão mais realista da atividade específica do músico e do seu relevante papel no processo de criação e interpretação musicais.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1247 de 22 de Outubro de 2025.
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