Perante uma busca do Ministério Público (MP) no âmbito de um processo de investigação criminal, o presidente da Câmara da Praia, em reacção, além de ordenar o encerramento das instalações municipais, incluindo mercados, creches, cemitérios e serviços, trouxe para o debate político a questão da revisão constitucional “para evitar que se repitam acções desta natureza”. Ora, punir os munícipes pelos problemas que a Câmara Municipal eventualmente terá com a Lei e reclamar por mudança da Constituição para não ficar sujeito à acção penal do MP não é certamente o comportamento esperado dos detentores de cargos políticos.
O poder político só é legítimo se exercido no quadro constitucional e legal. Tentar fazer política fora do quadro da normalidade democrática pondo em causa a credibilidade das instituições e o princípio da separação dos poderes é abrir caminho para a instabilidade política. Consequências a vários níveis seguirão, em particular, com impacto nas perspectivas de crescimento e desenvolvimento e na manutenção da paz social. A tentação para enveredar por essa via é grande, considerando o sucesso que em outras paragens políticos populistas têm tido, contornando as normas e os procedimentos, desafiando o poder judicial e procurando impor o voto conseguido na urna como única base da legitimidade no exercício do poder.
A verdade, porém, é que a democracia é constitucional e liberal. O exercício do poder não se suporta unicamente no princípio da maioria. É necessariamente limitado, seja pelos direitos fundamentais dos indivíduos que são invioláveis e inalienáveis, seja pelo primado da Lei e a independência dos tribunais, implicando que ninguém está acima da Lei, seja ainda pelos checks and balances devido ao princípio da separação dos poderes. Ninguém pode basear-se nos votos que recebeu na última eleição para subtrair-se à fiscalização de órgãos constitucionais competentes, para constranger a liberdade de circulação das pessoas, para usar como arma de arremesso ou de pressão política o acesso dos cidadãos aos serviços públicos.
Pelo acontecido na cidade da Praia nos últimos dias percebe-se porque é cada vez mais forte a tentação de desafiar o quadro constitucional e legal e não cumprir as regras do jogo. Um caso é o dos partidos políticos que, mesmo enquanto pilares do sistema democrático, tendem a validar tais comportamentos, seja por seguidismo cego dos líderes, seja por ganhos tácticos no combate político, seja também para capitalizar sobre forças ou sentimentos antissistema que sempre existem na sociedade. Pelos comunicados e declarações de dirigentes pode-se ficar com impressão que o MP não é realmente reconhecido como o titular da acção penal.
Aparentemente não há pejo dos partidos, enquanto actores políticos, em disputar com o MP, em violação da sua autonomia e do princípio da legalidade, quais os crimes que devem ser investigados, quais os inquéritos que devem ser arquivados errados e quem levar a julgamento nos tribunais. Ou seja, investiga-se um crime e logo um político questiona porquê agora, porque este caso e não outro, porque esta pessoa ou entidade e não outra. E não tarda muito que apareça alguém e, praticamente do nada, peça uma revisão da constituição para que certas buscas não aconteçam.
Curiosamente, o zelo demonstrado em tentar contornar o sistema democrático existente já não se nota quando devia contar mesmo para o seu funcionamento eficaz. Poderia ser precioso, por exemplo, no que se trata da assunção da responsabilidade parlamentar dos partidos de fiscalizar em sede própria a execução pelo MP da política criminal, nas audições para a preparação do debate anual sobre a situação da justiça e no processo de escolha dos candidatos aos órgãos de gestão das magistraturas.
Descaso similar nota-se em outros sectores como a comunicação social cujas funções configuram as de um de um contrapoder. A corrida, porém, por audiências, por manchetes provocadores e, ultimamente, para competir com as redes sociais interfere com essa função, não propiciando, em várias situações, equilíbrio e informação factual e contextualizada e não incentivando espírito crítico e dialogante na esfera pública. Tende-se a sacrificar a informação a favor do entretenimento e mobilização das paixões quando, por exemplo, se opta invariavelmente por matéria que gera e alimenta indignações sucessivas, sentimentos de abandono e ressentimentos de vária ordem.
Tudo isso ajuda que se normalizem formas de fazer política que fogem às regras, que se mostram provocatórias no contornar dos procedimentos estabelecidos e que oferecem soluções rápidas e simples a situações complexas. Do ambiente político criado ascendem líderes que acabam por adquirir uma espécie de selo de autenticidade e de honestidade junto dos seguidores por, no entendimento deles, serem capazes de, sem hipocrisia, dizer as coisas como elas são e trocar as “peças” no jogo viciado que mantém o povo sempre a perder e as elites a ganhar.
Em muitas democracias a trajectória dos populistas tem sido o mesmo. Com a sua actuação desabrida na política ganham notoriedade e seguidores e, apostando em matérias fracturantes, cavam um fosso na sociedade que dificulta o diálogo democrático no espaço público. Normalmente associados com a extrema direita na Europa também estão presentes na extrema-esquerda como acontece nos Estados Unidos com Zohran Mamdani, com o partido Die Linke na Alemanha, dos Verdes no Reino Unido e a France Insoumise. Em Cabo Verde parece evidente que assentaram arraiais na esquerda com a vitória de Francisco Carvalho na corrida pela liderança do PAICV.
Num artigo de 19 de Dezembro no jornal Financial Times, John Burn-Murdoch considerou que o populismo vindo dos extremos tanto da esquerda como da direita têm algo em comum: caracterizam-se pela “emergência e consolidação de uma política que é anti-sistema, anti-crescimento e fundamentalmente que se vive num mundo de jogo de soma zero”. A atitude gerada com tal política é considerada pelo colunista como divisiva, adversária e tende a trazer consequências negativas para a economia e a sociedade.
Sinais disso são evidentes em Cabo Verde. Notam-se perfeitamente na forma como se verificou a gestão do município da Praia no mandato anterior, com orçamentos aprovados contornando os Estatutos dos Municípios, e na forma disruptiva como se processou a luta pela liderança do PAICV, obrigando à intervenção do tribunal constitucional. O incidente da busca do MP à CM da Praia preanuncia que processos disruptivos vão continuar. Na sua base está a crença que o poder do voto sobrepõe-se a tudo, como se vem querendo provar, e até uma revisão da Constituição para servir os interesses de poder sem freios se pode pôr na mira.
Cabo Verde, porém, não é um tipo de autocracia eleitoral, mas sim uma democracia liberal e constitucional. É fundamental que, de forma proactiva como aconteceu com a ordem dos advogados, o sindicato dos magistrados do Ministério Público e a associação dos juízes se pronunciaram em defesa do Poder Judicial, a sociedade civil, a comunicação social e outras organizações sociais se posicionem contra a normalização de práticas políticas que, no fim do dia, poderão abrir caminho para a tirania da maioria, para a arbitrariedade e para a impunidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1256 de 24 de Dezembro de 2025.
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