Chamam-lhe o “pai” da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV). Quando ouve o epíteto, Wladimir Brito costuma brincar, como quem pelo humor tenta aliviar o peso de tamanha responsabilidade: “Dizem que sou o pai, mas eu ainda ando à procura da mãe. Ainda não a encontrei”.
Mas a verdade é que foi ele, quem nos idos tempos de 1991, redigiu o texto da Magna Lei, a convite do recém-eleito primeiro-ministro Carlos Veiga e da força política que o sustentava, o MpD. Aceitou e cumpriu: fez o “projecto que depois, com algumas alterações, mas não muitas” se tornou na CRCV.
Filho de pais cabo-verdianos, foguense por parte da mãe e sanvicentino do lado do pai, Wladimir Augusto Correia Brito nasceu em Bissau tendo vindo para o Mindelo com aproximadamente três anos. “São Vicente é a minha terra”, assume. Levaram-no os estudos para Portugal, país onde fez todo o percurso académico (da licenciatura ao doutoramento em Direito, na Universidade de Coimbra) e onde acabaria por se estabelecer (é professor catedrático de Direito Constitucional na Universidade do Minho).
É pois em Portugal que Wladimir Brito estava a 13 de Janeiro de 1991, data das primeiras eleições multipartidárias e, embora de tempos a tempos viajasse para Cabo Verde, era de lá que acompanhava, através de amigos, o processo que conduziria à abertura política. “A partir de certa altura, eu e outros amigos, entre os quais o actual Presidente da República, tínhamos tido um papel de contestação do regime autoritário que havia em Cabo Verde”, recorda.
Serão, aliás, vários desses amigos que depois acabam por constituir o MpD, do qual no entanto, Wladimir Brito nunca foi militante. Aliás, , por princípio e feitio, nunca foi militante de nenhum partido, sequer do Bloco de Esquerda com o apoio do qual concorreu recentemente às eleições autárquicas de Guimarães (Portugal).
“Tenho um espírito muito crítico e penso que perturbaria qualquer partido em que entrasse. Se eu não concordo, se tenho uma ideia diferente, eu digo e, às vezes, isto não funciona bem em partidos”, explica. Sempre foi assim.
Entretanto, o Governo do MpD saído das eleições de 91 considerou que o país devia ser dotado de uma Constituição moderna e democrática. O convite foi feito a Wladimir Brito, que redigiu o projecto em Portugal. Cada vez que uma parte ficava pronta, enviava-a para Cabo Verde.
“A Constituição veio ‘em fatias’ para Cabo Verde, para discussão prévia”. Carlos Veiga reunia com o staff, discutiam o teor do texto. Amiúde, Brito vinha também reunir e debater as propostas. Regressava, escrevia, enviava e debatia-se. Em 1992, o constitucionalista mudou-se provisoriamente para Cabo Verde com a família para concluir o texto, que foi apresentado na Assembleia Nacional.
Não sem antes terem sido realizadas várias discussões e apresentações – algo que o próprio constitucionalista pediu – onde participaram também membros do PAICV como David Hopffer Almada ou Aristides Lima. Um outro pedido foi que o texto fosse publicado num jornal, para que todo o país, e também a emigração, pudesse ter acesso ao mesmo. Foi então publicado o documento na íntegra, e surgiram várias reacções ao mesmo.
A 25 de Setembro de 1992, o projecto sobe ao Parlamento e é aprovado com 56 votos a favor, 16 abstenções e nenhum contra. Bastantes abstenções, devido a alguma resistência da parte do PAICV. “Se bem me lembro, a justificação dada para não votar era por entender que se tratava de uma revisão constitucional e não de uma nova Constituição”. Mas o Constitucionalista desdramatiza: “houve um debate muito grande. O próprio Presidente da República, um homem com elevado nível cívico, político e pessoal, o dr. Mascarenhas Monteiro, por quem eu tenho muito respeito, também levantou algumas questões, porque entendia que se tinha retirado alguns poder do presidente, com os quais ele tinha sido eleito. Mas com a inteligência dele e com o sentido de Estado que tinha, após algumas conversas, acabou por promulgar a CRCV, fazendo uma declaração pública de enorme relevo e inteligência.”
A CRCV foi promulgada e os seus 322 artigos publicados, em suplemento, no Boletim Oficial nº. 12, de 25 de Setembro de 1992. Foi há 25 anos. “Tantos anos…” Ainda era Wladimir Brito um jovem especialista mal entrado nos quarenta. Na verdade, na altura tudo era ainda jovem em Cabo Verde. Entretanto, ao longo de um quarto de século, a Constituição cumpriu o seu desígnio, ultrapassou o teste do tempo e tem vindo a guiar condignamente a vida da Nação. Aliás, talvez se possa dizer que a mãe da CRCV é mesmo essa. A Pátria-mãe Cabo-verdiana.
Que princípios sagrados e que tipo de sociedade se pretendeu plasmar na Constituição da República de Cabo Verde (CRCV)?
Uma sociedade livre, democrática, que respeitasse a pessoa humana como o alfa e o ómega de toda a vivência política. A História da Humanidade é a história da luta pela dignidade da pessoa humana. Essa tem sido sempre a grande luta dos seres humanos, a luta pela sua dignidade e liberdade também. E esta é uma Constituição de dignidade e liberdade da pessoa humana.
Sendo filha do seu tempo, é intemporal?
Sim, enquanto mantiver essas características será. Todas as Constituições que mantêm essas características são intemporais no sentido do princípio, atenção, não do texto. Entendo que todas as Constituições devem ser revistas periodicamente, porque as sociedades mudam. Aliás, posso dizer que fui dos primeiros, se não o primeiro, a pedir, aqui em Cabo Verde, a revisão da CRCV. Fi-lo porque entendi, numa viagem aqui realizada, que já tinham passado anos suficientes.
Olhando para trás, a CRCV cumpriu a sua função?
A grande preocupação na época era a estabilidade sociopolítica, e a Constituição de facto conseguiu garantir essa estabilidade. Penso que Cabo Verde é dos poucos países no mundo que cumpre legislaturas inteiras. Isso foi muito bom para o país, um país pobre, que estava à procura do seu desenvolvimento e que, para isso precisava de estabilidade. Não de uma estabilidade de “mortos”, mas uma estabilidade de vivos, onde havia discussão, crítica, mas onde se pudesse avançar, onde o governo pudesse estar preocupado com o desenvolvimento e não apenas com a sua sobrevivência política. Isto foi acontecendo durante esses 25 anos da CRCV.
Tem sido apontado que há direitos, principalmente nas questões sociais, que ainda falta cumprir. Que só poderão ser cumpridos à medida que o país se for desenvolvendo, como afirmou recentemente ao EI Benfeito Mosso Ramos. Houve na CRCV uma perspectiva já para um futuro, um estádio onde se pretende um dia chegar… sem no entanto lá estar?
Sim. O texto original da CRCV, de 92, dizia que ‘progressivamente’, e de acordo com o desenvolvimento económico e social, iria-se consagrar alguns direitos. Tínhamos a plena consciência de que tinha que ser assim. Aliás, lembro-me que na altura tive, aqui em Cabo Verde, uma conversa com o dr. Medina Carreira e discutimos essa questão da progressividade do cumprimento de alguns direitos: se se pusesse lá, como está na Constituição portuguesa, esses direitos todos, de repente, as pessoas podiam exigir. Ao pôr progressivamente, quer o parlamento, quer o governo podiam não incorrer em inconstitucionalidade, porque podiam dizer ‘neste momento, o desenvolvimento não permite realizar esses direitos’. Mas também permitia que as pessoas dissessem: ‘há um mínimo aqui que pode ser realizado’. Ou seja, havia uma tensão entre as exigências individuais e as exigências colectivas do governo que facilitava essa evolução. Ainda, falta cumprir, mas não é só aqui. Em Portugal, em França… é difícil cumprir na totalidade. Por exemplo, habitação para todos, vai-se fazendo o caminho, melhorando as condições para alguns, arranjando casa para outros…
Falava há pouco da necessidade de revisões periódicas. Houve já três revisões. A primeira, extraordinária, em 95, e depois duas ordinárias em 1999 e 2010….
A primeira não foi propriamente uma revisão. Foi um problema de um cumprimento de um prazo, que foi preciso rectificar. Uma coisinha cirúrgica, pontual. [A revisão, feita na sequência da publicação tardia da lei eleitoral de 1994, teve como único propósito adiar a aplicação de um preceito que proibia alterações e essa lei no ano anterior às eleições]. Quanto às outras, quando se fez a CRCV a ideia que ficou foi a de que tinha muitos artigos. Expliquei várias vezes que nas Constituições saídas de regimes autoritários ou ditatoriais, a tendência é terem um articulado muito longo, porque o legislador constituinte tende a assegurar a democracia, a dignidade e a liberdade de qualquer forma – isto é, no sentido de constitucionalmente as assegurar com todas as amarras possíveis, para que os governos, parlamentos e tribunais não entrem em desnorte. Dei como exemplos a CR portuguesa, a espanhola, a brasileira-que inclui mesmo um código de trabalho, porque disso havia necessidade. A ideia prevaleceu. E quando se fez a revisão, o que se fez para resolver o problema do n.º de artigos? Juntaram os artigos, o número de palavras ficou o mesmo, talvez mais até porque houve a introdução [na revisão de 99] do Tribunal Constitucional, que não existia. Em minha opinião foi um erro técnico, porque alongou demasiadamente os textos, juntou coisas que não devia, etc. Por outro lado, na revisão foram eliminados aspectos importantes, nomeadamente a liberdade do povo pedir um referendo. Já não é possível, agora têm de ser os órgãos a oferecer o referendo ao povo. Havia aqui um princípio de equilíbrio entre as ilhas que foi completamente eliminado, e que podia inspirar agora novas teorias e novas práticas constitucionais sobre esse equilíbrio…
Esse equilíbrio entre ilhas de que falou, como funcionava?
As populações podiam pedir o referendo, mas o referendo só podia ser feito se 7 das 10 ilhas (ou 9, que são as habitadas) participassem com um número mínimo de subscrição do pedido. Isto significava que uma ilha, por maior que fosse, não podia impor o referendo sobre qualquer matéria a nível nacional. Isto podia ser replicado noutras matérias, de desenvolvimento por exemplo, opções estratégicas de políticas públicas, etc. Mas entenderam retirar aquilo e copiar, de novo, o texto português.
Agora que já se começa a falar de uma nova revisão, o que pensa que não pode ser esquecido?
Essa questão do referendo. Tornar a dar ao povo o direito de requerer ao Presidente da República (PR) a realização de referendos em matérias importantes para a vida nacional e não deixar que sejam só os órgãos, embora eleitos, a fazer isto. Entendo que a democracia tem de conjugar uma dimensão de grande participação cívica e uma dimensão de participação institucional. Se deixarmos tudo para as instituições, a democracia degrada-se naturalmente, porque as instituições muitas vezes têm grandes falhas, práticas não aconselhadas. Tivemos aqui em Cabo Verde um exemplo interessante de democracia participativa quando os deputados quiseram aumentar o seu salário, e as pessoas saíram à rua dizer ‘não, porque o país não tem condições para que isso aconteça’. Como se viu, o país não entrou em revolução, em guerra civil, nada. Os deputados perceberam, recuaram na proposta, e povo e instituição ficaram outra vez compatibilizados, pelo menos até uma próxima questão. É importante conseguir esse equilíbrio. E uma das formas para o conseguir é através de referendos nacionais e locais.
A segunda questão que entendo que se deve rever em matéria de revisão constitucional é relativa à lei eleitoral. Vivemos num país arquipelágico, temos 10 ilhas e as ilhas devem ser tratadas de igual forma, pese embora as suas diferenças de dimensão territorial, e populacional e até de desenvolvimento económico-social. Tenho vindo a defender que devíamos ter sistema misto: um sistema em que os partidos apresentariam as suas propostas, os seus candidatos, nos círculos eleitorais normais, método de Hondt, se assim se entender, etc. mas também um outro sistema em que cada ilha apresentava um deputado. Ou seja, o arquipélago, no seu conjunto, teria os deputados dos partidos, como agora acontece, mas a isso acrescentar-se-ia, a cada ilha um deputado. Em igualdade completa: 1 deputado por cada ilha. Este seria proposto pela população, através de um número mínimo de assinaturas. Por exemplo, em Santiago podia haver 4 ou 5 candidatos, quem vencesse arrebatava Santiago. Isto traria candidaturas independentes dos partidos, individualmente consideradas e que representavam as ilhas, para dentro do parlamento.
Um sistema bi-camarário? Tipo um senado?
Nada de senados, que o país não tem dimensão para senados. Eram deputados dentro da Assembleia juntamente com os outros. Poderíamos depois discutir a questão de fazer grupos parlamentares, mas para já, penso que esse sistema misto seria uma excelente oportunidade de permitir que cada ilha tivesse uma voz própria no parlamento, independentemente dos partidos. Isto tinha uma vantagem: como são deputados apresentados pela população, que representam a ilha, se não trabalharem bem a defesa da ilha, seguramente não serão eleitos a seguir. Poderão até fazer coligações entre as ilhas para zonas do país, zona norte, centro, sul, fazendo pressão política para que medidas sejam adoptadas para um conjunto de ilhas, cuja complementaridade exigiria medidas e políticas públicas comuns para o seu desenvolvimento. Haveria uma vantagem enorme nisto.
Traria maior representatividade às ilhas, mas em termos de deputados, continuávamos como estamos? Fortemente bipartidarizados?
Isto já é um problema sociológico que não cabe à Constituição resolver. A Constituição cria a liberdade dos partidos, e depois as populações é que sabem se querem um partido, ou dois, ou três.
Com círculos eleitorais tão pequenos, é difícil sair do bipartidarismo…
Sim, mas o problema não são os círculos pequenos, é a dinâmica. Por outro lado, há um problema que é comum a quase todos os países: os partidos acabam por captar a sociedade civil e depois fecham-se. Seja que partido for, seja aqui seja onde for todas as leis são sempre em defesa dos partidos. Votam as leis no parlamento e não aceitam nada que venha contrariar, ou pôr em causa, ou dificultar-lhes a vida, no sentido de obrigá-los a ter dialogar com terceiros.
Justiça
Em relação à Justiça. Insurgiu-se contra a criação do Tribunal Constitucional (TC), instituído há dois anos e cujo número de processos é menor do que, por exemplo, o Tribunal Fiscal e Aduaneiro que se está a pensar extinguir…
O que temos de saber é se o país tem condições financeiras para andar a proliferar tribunais. Quando se cria um tribunal tem de se pagar juízes, funcionários, água, luz, edifício, automóvel, papel, computadores, …Pergunte-se qual o custo anual do TC, divida-se pelo número de processos e veja-se qual é o preço de cada processo.
O TC tem um peso simbólico.
Nos EUA, o Supremo tem um valor simbólico, e foram eles que inventaram o controlo da constitucionalidade na época moderna. Tem todo o poder simbólico e não é um TC autónomo. Não é obrigatório que um país tenha um TC para controlar a constitucionalidade das leis. Se há uma vocação de controlo pode fazer-se em qualquer tribunal que tenha uma secção especializada nessa matéria. A minha resistência ao TC, aqui e em Portugal, baseia-se em dois aspectos: 1º, não temos juristas em número suficiente para criar um TC, prova dos factos é que temos três juízes e foram indicados juízes suplentes – dois, salvo erro – o que é inconstitucional. São juízes inconstitucionalmente nomeados. Então, demonstrou-se que até se tinha de fazer uma inconstitucionalidade para ter os juízes necessários para o tribunal. Depois indicamos três juízes, o que é um problema também delicado, porque se eu quiser reclamar do acórdão de um juiz, eu tenho que apelar para os mesmos juízes. Temos só três juízes, não temos gente para mais. E todo o dinheiro que se gasta nesse tribunal dava para mais um ou dois juízes no Supremo, ou na Relação, ou na 1ª Instância. O sistema de controlo funcionava na mesma.
E quanto aos Tribunais da Relação, foram criados dois – Barlavento e Sotavento –, no ano passado?
Sempre lutei para que se criasse pelo menos um. Criaram dois, ainda melhor, porque, de facto são esses os tribunais das pessoas – não que o TC não seja de resolução dos problemas das pessoas – mas do quotidiano, as famílias, a propriedade, crime… Isso é que é o diário dos tribunais. Esse tribunal da Relação evita a sobrecarga do Supremo, e permite que o Supremo, mesmo tendo menos juízes consiga reflectir sobre cada acórdão e crie uma jurisdisprudência de qualidade, porque passa a ter menos processos. Os processos do Supremo só vão ser decididos de direito, enquanto antes tinha de ser de direito e de facto. É interessante ter-se um para cada área do país, de modo a poder dar respostas aos recursos e evitar que seja o STJ a resolver todos os recursos, o que de facto atrasaria – e atrasou – muito os processos.
Quando ao desempenho, o Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ) é independente mas quem responde pela Justiça é o governo. Face a isto, o que pensa de uma eventual representação do governo nesse Conselho? Ou, dito de outro modo, como equilibrar esta questão de quem decide e faz e quem presta contas?
A separação de poder indica que temos quatro grandes poderes: PR, governo, parlamento e tribunais. Os tribunais estarem amarrados ao Ministério da Justiça é degradar a soberania dos próprios tribunais – a soberania dos tribunais não é um problema da decisão do juiz, isso é independência. Não vamos confundir o poder soberano do tribunal com a independência, pese embora cada juiz transporte com ele todo o poder soberano do tribunal. A sentença do juiz é um condensado do poder soberano judicial. Mas se há essa soberania, o tribunal tem de agir tal como age o governo, o parlamento e o PR. O PR não tem nenhum membro do governo de quem depende para o que quer que seja. Pode dizer-se que depende do ministro das Finanças, mas isso é o Estado. É o ministério que gere o dinheiro do Estado, para fazer o pagamento a todos os órgãos de soberania, a todos os funcionários. Quando o PR recebe o seu orçamento próprio, faz a gestão. O governo e parlamento, a mesma coisa. Por que motivo o orçamento dos tribunais deve estar no MJ?
Não se trata da gestão de orçamento. Referia-me, de forma mais geral, a ter um representante do governo no Conselho?
Acho que o governo não tem de estar representado, tal como, aliás, os tribunais não estão representados no governo. Agora é diferente quando se cria mecanismos para pessoas designadas pelo parlamento ou pelo PR. Isso é para defender do corporativismo dos juízes. E tenho defendido que essas pessoas deviam estar a tempo inteiro nisto, porque muitas vezes, como têm as suas profissões, se estão a trabalhar, não vão. Então, muitas vezes o conselho reúne-se com os juízes e às vezes com uma ou duas pessoas para fazer o quórum. E temos decisões corporativas porque eles decidem em conjunto. Defendo que [esses representantes] fossem profissionalizados como os ministros. Atenção, podem criticar e dizer: ‘mas isto é um governo dos juízes’. Não. É um auto-governo dos juízes mas com controlo externo, porque tem de prestar contas. Em Cabo Verde está mais ou menos resolvido parte desse problema, porque eles contas ao parlamento através de uma comissão, têm de fazê-lo é publicamente. De facto, quando há um problema nos tribunais as pessoas vão ao Ministério da Justiça. Este diz: ‘não tenho nada a ver com isto, os tribunais são independentes’. A pessoas vão ao CSMJ ou ao presidente do ST ou do TC, e eles dizem “isso é do Ministério da Justiça, que não nos dá meios”, etc. e as pessoas andam de um lado para o outro sem saberem a quem pedir responsabilidades. Os tribunais têm de meter na cabeça, de uma vez por todas, que se têm de responsabilizar sócio-politicamente perante o povo, em nome de quem julgam. E tem de se resolver o problema da organização do Conselho e do modo como se avaliam os juízes, porque os juízes não devem ser inspeccionados. Devem ser avaliados. Inspeccionam-se os serviços e avaliam-se os juízes, porque é uma carreira profissional - embora específica porque não recebem ordens nem instruções de ninguém.
Fala-se em inspecção, mas também não há avaliação…
Se há grupo social que é dotado de um forte corporativismo são os tribunais e com uma desvantagem muito grande: os juízes estão convencidos de que não podem ser criticados. Têm uma mentalidade absolutamente retrógrada, sob o ponto de vista da função. Ou seja “nós somos juízes, as nossas decisões ninguém as pode criticar porque se não estão a ofender a soberania”. Eu pergunto, eu ofendo a soberania do PR se o criticar? Ou o parlamento, ou o governo? Não. A crítica é livre no quadro da legalidade e da constitucionalidade. Portanto, os juízes são criticáveis como qualquer outro titular de órgãos de soberania. O que não se pode interferir com os juízes, é no momento em produzem a sua decisão. Aí são eles, a lei e a consciência. Ninguém pode interferir, nem sequer os tribunais ditos superiores. O juiz julga e depois pode recorrer-se para o supremo, e isto é o processo de recurso. Não é um controlo dos juízes, é um controlo técnico-jurídico. O controlo sócio-politico dos juízes tem de ser feito no parlamento, publicamente.
Mas, para clarificar, como seria feito isso?
Vão ao parlamento debater o estado da Justiça. Fazem relatórios, a comissão especializada discute, mas eles devem discutir publicamente as questões, tal como o governo faz. Não percebo porque é que o presidente do CSMJ não vai com o seu staff, explicar ao povo, através dos deputados, mas publicamente [as questões da Justiça]. Dizem que é para não interferir nas sentenças, mas ninguém vai discutir sentenças. Ou melhor, ninguém vai discutir a produção de uma sentença em concreto. Embora também possamos discutir sentenças. Em Portugal houve recentemente um caso grave de um juiz que decidiu citar a bíblia, a lei do talhão, numa situação de violência doméstica. Ninguém interferiu na sentença. Mas a sociedade levantou-se contra a decisão. Houve uma profunda critica, nas redes sociais, nos jornais, em todo o lado. Isso degradou a Justiça portuguesa? Não, pelo contrário. Quando a juíza assinou aquele acórdão, diz que assinou sem ler – ficamos a saber que há juízes que assinam sem ler. Se assinam sem ler têm processo disciplinar, porque têm o dever de ler. Estão ambos com processo disciplinar, que é algo, aliás, contra o qual sou. Se são órgãos de soberania, não há processos disciplinares, devem ser julgados em impeachment: ou prestam para servir a justiça ou não prestam e saem.
Então, resumindo, na parte da justiça, o principal seria?
Criar uma autonomia mais forte dos tribunais e obrigá-los a responder politicamente, perante o parlamento, mas publicamente, em debate parlamentar sobre o estado da Justiça.
PR e PAN
Uma outra questão de que se tem vindo a falar é a questão da substituição do Presidente da República em casos de ausência no estrangeiro, que tem dado azo a situações … controversas. Acha que devia ser revisto?
Acho que está bem. Só tem dado origem [a essas situações] com este novo presidente da Assembleia, que tem um entendimento fora do comum… Nos EUA, quando o PR sai quem fica [a representá-lo] é o vice-presidente, que o representa até no senado. Há vice-presidentes em vários outros países. Aqui, como é um [sistema de] parlamentarismo mitigado, não há vice presidente.O PR saiu, há alguém que o substitui, porque ele pode não ter a capacidade técnica de tomar uma decisão rápida [no exterior]. Temos aqui alguém para o fazer e para representar o país internamente, e daí que tenha poderes limitados. Não há dois PR: há um presidente e um PAN que o substitui nas suas ausências, com poderes muito limitados.
Mas, enquanto assume funções de presidente interino….
É evidente que não pode ser presidente da Assembleia Nacional. Ele não pode repre-sentar um órgão deliberativo com um órgão executivo. Isso é um princípio básico em todo o lado, exceptuando, agora, aqui em Cabo Verde que entendeu que pode fazer as duas coisas...
E em termos da representação no exterior, nomeadamente nas Cimeiras de Chefes de Estado e de Governo, levanta-se algumas vezes a questão sobre quem deve fazê-lo, o PR ou o PM?
Esse é um problema delicado que o semi-presidencialismo coloca. Aqui há choques e portanto há que definir um pouco com mais clareza, encontrar um critério que nos permita saber quem é que pode representar num dado momento. Sem andar em grandes discussões. Porque, em princípio, deviam conversar e chegar a um consenso. Mas quando não há esse encontro de vontades, gera-se um conflito institucional. Penso que a CRCV deve pensar um pouco sobre essa matéria, tentando encontrar um equilíbrio razoável, no quadro até do modelo actual.
Regionalização
A regionalização é outro tema actual. Na CR de 92 havia o Conselho para Assuntos Regionais, que foi retirado logo em 99. Hoje faria sentido voltar a falar disso?
Pode fazer sentido... Acho é que a regionalização tem de ser pensada, mas não em regiões político-administrativas , porque o Estado de Cabo Verde é um Estado unitário, é um arquipélago. Se verificarmos outros arquipélagos, não têm regiões político- administrativas. Aqui penso que se poderá, sim, criar regiões administrativas, porque é uma forma de administração da administração cabo-verdiana. Tem de se escolher é quais os critérios que devem ser estabelecidos para se criar a região: é a complementaridade das ilhas? É a sua situação geográfica?
Um modelo falado é uma ilha, uma região…
Isso na minha opinião é um disparate. As pessoas diziam que em Canárias há uma ilha, uma região. Eu queria que me dissessem qual é ilha nas Canárias é uma região. Em que lei do reino de Espanha se estabelece, no quadro das autonomias, que Canárias tem ilhas-região.
Seja qual for o modelo, concorda que deve haver maior autonomia das ilhas?
Sim. A descentralização em Cabo Verde é uma urgência, sob pena de haver uma degradação da coesão sociopolítica e económica cabo-verdiana. É uma urgência que tem de ser encarada de frente, assumida com toda a frontalidade, perder o medo de chamar as coisas pelo nome. Agora, há soluções que não são necessariamente regiões político-administrativas. Pode haver por exemplo, a criação de comunidades intermunicipais. Enfim, pode haver vários modelos, temos é de definir critérios. E não é, passo a expressão, ‘mandar bocas’ sobre a regionalização.
Crioulo “já é língua oficial”
E quanto a oficialização da língua cabo-verdiana. Na revisão de 99 foi institucionalizada, ficando o Estado incumbido de criar as condições para a sua oficialização. Falta cumprir?
O crioulo é língua oficial. Posso chegar a qualquer órgão de soberania e falar em crioulo. Vou ao tribunal, falo em crioulo com o juiz, ele tem de compreender. A administração pública fala em crioulo. É natural para os cabo-verdianos. O grande problema é a escrita. Se formos pela escrita de acordo com a fonética, é complicado, temos de encontrar um critério. Fizeram o ALUPEC que é contestado. O dr. Baltazar Lopes da Silva dizia que em princípio a escrita dominante vai ser a escrita de acordo com a fonética de ilha de Santiago. Não podemos achar que disso vem mal ao mundo, temos é tentar encontrar critérios que talvez compatibilizem um pouco mais a escrita com a diversidade fonética das ilhas. Isso cabe aos filólogos mas não com o argumento, como costumo dizer a brincar, do K. ‘O k é um som’. Dizíamos Catar, não com K. Está escrito com C. Eugénio Tavares escrevia com C. são estes argumentos que têm desesperado a comunidade, porque no fundo não tem uma justificação científica convincente. Costumo dizer, normalmente são os escritores, os poetas que vão assentar a questão, progressivamente, esse crioulo dos poetas e escritores vai fixando. Progressivamente vamos encontrar a [escrita e gramática]… mas claro que tem de se encontrar critérios que não suscitem dissenso mas consenso.
Precisa de mais alguma “achega” na CR?
Penso que não. O problema agora é sociolinguístico e científico ou literário.
Para terminar. Nem sempre legislação e mentalidades andam passo a passo. Como vê a relação da sociedade com a CRCV?
A sociedade cabo-verdiana é amiga da Constituição que tem, que é amiga da sociedade cabo-verdiana. Há uma boa relação. É claro que não estou a dizer que toda a gente sabe as normas todas da CRCV, mas há uma ideia. E o fundamental, nas construções democráticas, é que as pessoas fiquem com três ideias fundamentais: há liberdade de expressão, há respeito pela dignidade da pessoa humana e há garantias de defesa e da tutela efectiva dos direitos das pessoas. Esses três pilares, todos os cabo-verdianos sabem. Como dizia um camponês alemão ao imperador, ao kaiser, quando este quis tirar a suas terras: “você é o imperador, tira-me a terra, mas felizmente ainda há juízes em Berlim” , ou seja, podia levá-lo ao tribunal. Os cabo-verdianos sabem que há juízes na Praia, em São Vicente, na Brava, etc… São ideias já assumidas, agora é aprofundar essas ideias. Penso que é um fenómeno que decorre com naturalidade. E o PR, nesse aspecto, tem feito um trabalho excepcional, de grande relevo, de louvar mesmo de divulgação de CRCV e criação de uma cultura constitucional. Há um trabalho, também na educação, para criar essa cultura constitucional. Há uma boa relação…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 837 de 13 de Dezembro de 2017.