O Chão dos esquecidos

PorJorge Montezinho,14 jan 2018 6:18

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​Todos os dias, cerca de 20 vulcões entram em erupção em algum lugar do mundo. Grande parte deles envolve tragédias humanas. Em Chã das Caldeiras, esse dia chegou a 23 de Novembro de 2014.

 O rio de lava levou à frente povoações, destruiu campos agrícolas, obrigou à deslocação de mais de 1000 pessoas. Parou setenta e oito dias depois e ainda o magma não tinha arrefecido e já os primeiros habitantes regressavam. Atrás deles vieram os políticos, fizeram promessas, garantiram apoios, comprometeram-se com soluções. Houve eleições, mudanças de governo, confrontos e proibições, levantamento de proibições e esquecimento. Chã das Caldeiras passou a ser tema a evitar. Os políticos desapareceram, ou quando, espaçadamente, por lá passam, fazem-no a medo, porque sabem bem qual é o sentimento da população. A verdade é que quem vive em Chã das Caldeiras já deixou de acreditar.

A prova da falta de confiança dos habitantes de Chã das Caldeiras nas autoridades é visível na participação da população na consulta pública sobre o novo assentamento: até ao dia 31 de Dezembro havia duas contribuições escritas. Nenhuma delas ultrapassava as cinco linhas de texto. Um mês depois do processo ter começado e a outros trinta dias do seu término, ninguém quer saber.

As plantas e o projecto estão espalhados pelos mais de dois metros de uma mesa na sala principal do edifício do Parque Natural, na Portela, mas ninguém entra para os consultar, apesar de passarem diariamente diante da porta. Aliás, tem sido maior a curiosidade dos estrangeiros em ver como será o futuro assentamento do que dos locais.

As razões para este alheamento? Várias. Para começar, ninguém concorda com o local onde vão ser construídas as novas casas, Bangaeira, porque ficarão na zona mais perigosa em caso de nova erupção – e isso mesmo foi dito pelos técnicos que apresentaram o projecto no passado dia 29 de Novembro [ver próximo artigo sobre o novo assentamento]. Depois há o problema das famílias contempladas, 52. Outras tantas ficaram de fora. E há ainda uma outra dúvida, quando vão estar prontos os projectos das outras localidades? E o que pode ou não fazer quem lá mora, uma vez que ninguém sabe quando estarão prontos esses planos? Entretanto, vive-se do quê?

A história de Chã das Caldeiras umbilicalmente ligada à actividade vulcânica do Pico do Fogo. Das 27 erupções históricas que ocorreram, três delas (1951, 1995 e 2014-2015) afectaram directamente a vida da população que habitava o interior da caldeira.

Os primeiros registos de assentamentos urbanos de Chã das Caldeiras datam de 1860. Em 1912, realizam-se as obras de canalização da água dos mananciais em Boca Fonte (Fonte Velha e Nova Fonte) que abasteciam as povoações de São Filipe e Cova Figueira. A partir dessa data, estabelecem-se na caldeira os primeiros moradores de Chã das Caldeiras, formando pequenos núcleos populacionais, para poderem explorar o elevado potencial agrícola existente na zona. Nascem, assim, os núcleos de Bangaeira e Portela. Dadas as excelentes condições para a agricultura, desenvolve-se, também, o pequeno núcleo populacional de Boca Fonte, e, em 1943, surge o de Ilhéu de Losna. Desta forma, vai aumentando a extensão de território ocupado por populações que se dedicam a actividades agrícolas e pecuárias. À época, a vida em Chã das Caldeiras caracterizava-se pelo isolamento geográfico, até que, em meados dos anos 70 do século passado, foi inaugurada a estrada que daria acesso aos núcleos populacionais de Portela e Bangaeira.

No dia 12 de Junho de 1951, ocorre a primeira erupção vulcânica que afecta a população de Chã das Caldeiras, soterrando as primeiras casas construídas em Bangaeira, facto que não deteve o crescimento populacional da localidade. Em Abril de 1995, volta a ser posta à prova a capacidade de, palavra da moda, resiliência dos habitantes de Chã das Caldeiras: uma nova erupção vulcânica devasta grande parte da produção agrícola. Relativamente ao solo residencial, as escoadas de lava atingiram principalmente a zona da Portela, incluindo serviços e infra-estruturas públicas importantes, como a estrada de acesso que, ao ficar coberta de lava, deixou a população isolada.

Depois deste desastre natural e apesar da escassez de bens e serviços públicos essenciais (saneamento, água, saúde, educação, …) que, por decisão do Governo, não são restabelecidos para evitar a expansão urbana numa zona de risco, Chã das Caldeiras sofre um aumento populacional: o Censo de 2010 levado a cabo pelo INE regista 697 residentes, número que aumentará em quase 50% em 2014. Este crescimento exponencial, a seguir à erupção de 1995, consolida os núcleos de Boca Fonte e Cova Tina. A longo prazo, esta erupção trouxe algumas consequências económicas positivas, resultantes, por um lado, do turismo e, por outro, do apoio da ONG italiana Cooperazione per lo Sviluppo dei Paesi Emergente (COSPE) e das ajudas económicas da UE. Foi possível a construção de duas unidades de produção fundamentais para o desenvolvimento da zona, uma das quais está vinculada ao processamento de frutas e a outra à produção vinícola.

A última erupção iniciou-se a 23 de Novembro de 2014, e levou à evacuação da totalidade dos residentes em Chã das Caldeiras. O número de desalojados é impreciso, dado que os dados provenientes das diferentes fontes não concordam entre si: segundo a Avaliação das Necessidades Pós-Desastre (PDNA), realizada para o UNDP, foi evacuado um total de 964 habitantes; no entanto, o Sistema de Cadastro Socioeconómico da CMSCF contabilizou 1.007 desalojados, número que aumenta para 1.076, no relatório apresentado em 2016 pela Cruz Vermelha.

A erupção de 2014-2015 teve consequências económicas devastadoras a nível local. As torrentes de lava arrasaram a quase totalidade dos núcleos de Portela e Bangaeira, sepultando ou afectando gravemente os edifícios, infra-estruturas e plantações agrícolas que se encontravam na trajectória das sucessivas escoadas.

Todos os recursos hídricos ficaram inutilizados: o poço de água, descoberto em 2003, que abastecia a localidade para consumo familiar e para a actividade pecuária, e as infra-estruturas hidráulicas para a produção agrícola estão sepultados debaixo da lava.

Nos sectores produtivos, as maiores perdas verificaram-se nos terrenos agrícolas, 24% dos quais foram devastados: 208 dos 520 hectares de terra agrícola da localidade ficaram soterrados pelas lavas com frentes de 4 a 8 metros de altura, que alcançaram, em alguns lugares, 18 metros. As escoadas cobriram 3% dos cultivos de vinha e 5% das plantações de árvores de fruto, provocando elevadas perdas económicas, relacionadas não só com o tempo que estes cultivos levarão a recuperar-se, mas também com os efeitos do abandono de todos os cultivos durante os meses que durou a erupção.

Perdeu-se a maior parte dos equipamentos sociais de que a população dispunha, entre os quais dois estabelecimentos de ensino (infantil e básico), onde, no ano lectivo anterior à erupção (2013-2014), estavam matriculados 186 alunos. Também ficaram inutilizados o pavilhão desportivo, o auditório e a biblioteca (estes dois últimos alojados na Sede do Parque Natural), bem como a Unidade Sanitária de Base (USB), inaugurada em 2013, que acolhia, todos os meses, a mais de 40 doentes, e, igualmente, as duas igrejas da localidade: a Católica e a Adventista do Sétimo Dia.

No que se refere ao turismo, os danos nos equipamentos foram totais. Perderam-se 14 estabelecimentos, 6 restaurantes, 2 bares, um posto de informação turística e o Centro de Interpretação do Parque Nacional do Fogo, inaugurado em Junho de 2014.

Actualmente, sem saberem para que lado se virar, esquecidos pelas autoridades centrais e locais que praticamente desapareceram, os habitantes de Chã fizeram o que estão habituados a fazer, juntaram esforços, arregaçaram as mangas e deitaram eles mesmos mãos à obra. Começaram a cavar o magma duro, a reconstruir ou a construir de raiz, pediram empréstimos bancários para comprarem viaturas, reabriram o território ao negócio do turismo literalmente a força de braços – a única estrada que percorre toda a caldeira enegrecida foi recuperada da rocha pela população, com martelos e picaretas.

Não há revolta no ar, mas também não há rendição, nota-se apenas uma tristeza colectiva. Sentem-se marionetas usadas num jogo partidário. Têm a noção que a mudança política no Fogo deveu-se a eles, alteraram o voto tradicional porque se sentiram amparados pelos candidatos do agora partido do governo. Aliás, na noite das eleições, quando ainda não se sabia o resultado da votação na ilha do vulcão, já os dirigentes do PAICV afirmavam que perdendo Chã, perdiam o Fogo. E assim aconteceu.

Não há revolta, mas há desconfiança, uma sensação de traição. Mas o povo de Chã é paciente, aprenderam a ser assim, talvez porque têm sempre a imagem do Homem Grande, do irmão como também lhe chama, de todos os ângulos que olham. O vulcão, impassível na sua força, sereno entre explosões cíclicas que ao longo dos séculos foram moldando a geografia e a morfologia da caldeira. São pacientes, haverá mais eleições, dizem, na altura mostrarão o seu sentimento com uma cruz.

Sentem-se abandonados, mas não sozinhos porque podem contar com os vizinhos. De resto, falta tudo o que é infra-estrutura básica: não há polícia, não há um posto de saúde, não há escola – não há escola? Mas o autarca de Santa Catarina não tinha dito o contrário? – olham com desdém para esta frase e repetem: não há escola, há uma sala alugada, sem janelas, onde quarenta alunos de amontoam em duas turmas compostas, 1º e 2º ano de uma vez, 3º e 4º de outra. Os professores já avisaram que não há condições mínimas e que isso tem reflexo no aproveitamento escolar das crianças.

Sentem-se abandonados e injustiçados, muitas vezes por causa dos vizinhos que não foram contemplados. Um dos critérios para a atribuição de uma nova casa às famílias, às 52 famílias, foi não terem já outra habitação. Parece correcto à primeira vista, menos correcto quando se sabe o que é considerada habitação. Quando os habitantes de Chã começaram a regressar às localidades da caldeira, tiveram de procurar um lugar onde ficar. Muitos, os que conseguiram, desenterraram partes das suas casas das lavas. Na Portela, no meio do negro do magma solidificado, vêem-se telhados brancos a espreitar. Dentro desses telhados, em verdadeiras tocas rodeadas de rocha, vivem famílias com filhos pequenos. Para as autoridades isso conta como casa.

Como contam os funcos que foram construídos sobre as pedras queimadas. Mais uma vez, quem regressou precisou de um abrigo para quando terminava o dia de trabalho, com as casas soterradas e sem poderem cavar para chegar ao interior, optaram por construir os tradicionais abrigos circulares com telhados cónicos. E também vivem lá famílias, em habitações que a maior parte das vezes não têm três metros de diâmetro. Nem casas de banho. Nem cozinhas. Mas isso também foi considerado casa pelas autoridades.

Todos os que saíram de Chã durante a erupção querem voltar. A agricultura, a vinha, os turistas, o sustento está lá, nas encostas do vulcão. Já regressaram uns 400 dos mil que partiram, mas os outros estão em fila de espera. Os que começaram a vir cansaram-se de não fazer nada. Estavam há dois anos em Achada Furna, parados, a entrar em depressão, a receberem o subsídio do governo, que no caso de uma família de pai, mãe e três filhos ficava pelos 19.000$00 mensais. A Comissão Intergovernamental entretanto criada levava as contas da luz e da água, todos pensaram que estavam a ser pagas até ao dia em que a empresa Água Brava lhes apareceu à porta, para cortar os abastecimentos. Havia facturas acumuladas com meio ano, para que as torneiras não secassem tiveram de fazer acordos de pagamentos faseados. Para isso era preciso dinheiro. A solução que há tanto lhes passava pela cabeça, materializou-se no regresso ansiado ao trabalho no campo, às vindimas e à produção do vinho, ao turismo.

E os turistas têm vindo. Apesar das condições ainda não serem as melhores, eles vêm. Muitos estão de regresso depois de já terem conhecido a antiga Chã e não se importam quando não há água, ou quando esta não passa de um fiozinho frio. Regressaram e continuam a palmilhar os caminhos vulcânicos, a sentirem as pedras negras a ranger por baixo das botas, a comprarem os pequenos funcos decorativos feitos pelos artesãos locais e vendidos a 300$ nas bermas da estrada.

E os habitantes de Chã continuam a saber recebê-los, continuam a aceitar cada vez mais pedidos de agências. Andando por Chã ouve-se uma verdadeira babel de língua, o crioulo cantado dos locais, alemão, inglês, francês, português. Nas localidades, recuperam-se os pequenos negócios turísticos. Como o hotel do Zé, uma verdadeira fortaleza, montada como um puzzle, com pedras vulcânicas simetricamente encaixadas umas nas outras. No interior estão o que ele chama de pilares, que na realidade são autênticas esculturas feitas por alguém que não consegue estar parado um minuto, numa febre criadora que cansa só de ver. As portas dos futuros quartos terminam num triângulo. Se perguntarmos a razão de tão estranho desenho, desfaz-se num sorriso e responde que se fizesse uma porta normal, rectangular, não estaríamos a ter tema de conversa. Os quartos são azuis e brancos por dentro, pintados numa linha irregular que faz lembrar o batimento cardíaco. Porquê, responde com outro sorriso, olha à volta para lá da janela, o que vês? O mesmo desenho que está nas paredes, recortado nas arestas das montanhas que rodeiam Chã.

Ou o hotel da Marisa, reconstrução que já foi contada pelo Expresso das Ilhas em Maio do ano passado. Hoje, ainda não se pode andar descalço na sala de jantar, tal é o calor que se sente e que flui das entranhas da terra. A quinze centímetros de profundidade a temperatura é de 80º graus. Já serviu para cozinhar.

Ou o David que tem bem presente a recordação da erupção no compartimento onde serve as refeições aos turistas. Duas maciças levas de lava entraram-lhe por duas janelas da casa. E ainda lá estão, negras, duras, paradas no tempo, mas também, quantos podem afirmar que têm milhões de anos da história terrestre no meio da habitação?

Os habitantes de Chã só querem que os deixem trabalhar. Estão habituados a isso a vida inteira. Gerações inteiras. Com um pedaço de chão, fértil como é o chão à volta do vulcão, conseguem produzir legumes e fruta duas vezes ao ano. E têm a adega. A antiga foi levada pelo vulcão, sobra apenas uma arcada branca. A nova foi prometida pelo poder central, mas dela, nem a primeira pedra. A solução, mais uma vez, partiu da cooperação entre vitivinicultores. Em três tempos mandaram vir um edifício pré-fabricado, instalaram as cubas no interior e desataram a produzir sem esperar por ninguém. Curiosamente, o vinho Chã de 2014, o ano da erupção, é de uma qualidade ímpar.

O geógrafo francês Christophe Neff chamou à tragédia do Fogo “a erupção esquecida” e o geólogo inglês David Rothery apelidou-a da “erupção de que o mundo não ouviu falar”, interrogando de forma provocadora: “Ou nós só nos preocupamos com vulcões quando há uma hipótese de eles incomodarem os nossos planos de viagens aéreas?”. Quando o conto aos habitantes de Chã, eles sorriem e aquiescem com um gesto de cabeça. “A erupção esquecida… É um belo nome, porque hoje continua assim”, dizem.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro de 2017. 

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Autoria:Jorge Montezinho,14 jan 2018 6:18

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  11 dez 2018 3:22

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