A Quarta-feira de Cinzas é, na ilha de Santiago, um feriado de grande expressão e que, aparentemente, se distancia do espírito de jejum e abstinência recomendado pela igreja Católica (ver caixa), que nesse dia assinala o começo da quaresma – quarenta dias de preparação para a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – com a cerimónia, na missa, de imposição de cinzas.
No entanto, e conforme entrevista do investigador José Maria Semedo ao Expresso das Ilhas (em 2009), o farto repasto do dia de Cinzas tem tudo a ver com o jejum que nesse dia se inicia já que, desde o início da época colonial, era comum os senhores alimentarem muito bem os escravos numa única refeição, para que aguentassem o restante do dia em jejum. Daí que, até hoje, é prática o almoço de Cinzas ser rico – peixe seco, legumes cozidos, molho de côco, totoco (espécie de bolinho feito com massa de milho) – mas, não incluir carne. Cuscuz e mel não podem faltar à sobremesa.
Foi há cerca de dez anos que Antonino Marques, Tuni como é popularmente conhecido, um antigo condutor de Hyace, decidiu deixar o volante para se dedicar à produção de grogue. A sua empresa – Tuni Inovação – rapidamente conquistou espaço e ganhou notoriedade graças à produção da Aguardente de Frutas, hoje marca registada.
Nessa época, por ocasião da festa de Cinzas, Tuni decidiu oferecer mel às crianças de um jardim infantil de São Lourenço dos Órgãos (SLO). Foi quando estas crianças chegaram à sua propriedade para o apetecido lanche que o empresário se percebeu do inapropriado que era recebê-las no mesmo local onde produzia o grogue. Começou logo a projectar um espaço diferente onde, já no ano seguinte, pudesse recepcionar adequadamente as crianças.
“Idealizei o espaço mas, percebi que implicaria um certo custo financeiro. Então, por sorte, naquela altura recebi a visita de um americano que me fez uma grande compra. Foi a maior venda de aguardente que fiz de uma só vez, a um só comprador. E foi com esse dinheiro que criei a Praça di Mininos”, contou-nos.
O espaço é um pátio interior, agradável, com bancos à sombra das árvores, muros coloridos por desenhos infantis, etc. Criadas as condições para a visita anual das crianças ao senhor Tuni, para degustação de mel, tornou-se num ritual da festa de Cinzas que nem os meninos de outras zonas deixam de aproveitar.
“Nos últimos anos começaram a vir crianças de escolas da cidade da Praia. Quem pode traz o seu cuscuz e encontra aqui mel à vontade”, relata o empresário que assume os custos da produção do mel e ainda paga o transporte das crianças quando as Câmaras Municipais das zonas de onde elas provêm não cumprem o compromisso de custear a deslocação.
Depois de no ano passado terem recebido na Praça di Mininus umas 1.550 crianças, inclusive alunos de escolas da cidade da Praia, este ano houve uma diminuição na capacidade de recepcionar os pequenos estudantes devido à seca que condicionou a produção de cana-de-açúcar. Ainda assim, de 25 de Fevereiro a 04 de Março, foram mais de 800 as crianças que, acompanhadas pelos seus professores, participaram do delicioso lanche.
No andar de cima da propriedade, que continua a crescer em espaço, encontramos cerca de 30 crianças do jardim infantil de Ribeira Seca, concelho de Santa Cruz. A professora, Janice Lopes, explica que é a terceira vez que aceitam o simpático convite do Sr. Tuni.
“É uma boa iniciativa. Muitas escolas não têm a possibilidade de oferecer algo assim por ocasião da festa de Cinzas. É também uma boa forma de ensinar sobre as Cinzas, sobre as nossas tradições”, opina a mesma, reconhecendo ainda a generosidade do anfitrião na oferta anual que este faz de kits de materiais escolares às mesmas crianças.
“Na nossa comunidade muitos pais estão desempregados, então esse é um grande apoio”.
O mesmo repetem os outros professores que encontramos no pátio, em baixo, a tal Praça di Mininus. Ali, mais de 50 crianças do ensino Básico aguardam numa azáfama o tão desejado repasto. Não demora muito até que comecem a ser servidas malgas de cuscuz tenro regado com mel ou com leite de vaca “dormido” e, em alguns casos, com ambos em simultâneo. Também experimentamos e podemos assim atestar que o mel servido é de muito boa qualidade, sentindo-se no paladar o sabor intenso a cana, diferente do mel de açúcar mais comumente encontrado no mercado da capital.
Satisfeitos, os professores e gestores escolares José António e José Alcindo, da escola de Pico d’Antónia, lembram que os seus alunos participam desta tradição criada pelo Sr. Tuni desde a primeira edição. Os dois referem como vantagem deste evento o “festejar uma festa tradicional”. “Com esta iniciativa a festa de Cinzas tornou-se mais forte nesta região. Fez com que São Lourenço se tornasse referência das Cinzas”.
Talvez seja mesmo assim, porque o filho do empresário, e seu “braço direito” nos negócios, diz que na Quarta-feira de Cinzas é grande a “romaria” de gentes que chega à cidade de João Têves e outras zonas de SLO para visitar familiares e amigos.
Voltando aos dois professores, estes contam da ansiedade dos alunos quando se aproxima o dia da visita ao espaço do Sr. Tuni. A actividade faz parte do calendário anual de actividades e, quando regressam à escola, é costume trabalharem sobre o tema da festa de Cinzas e sobre o que vivenciaram na Praça di Mininus.
“Este ano, para além do lanche, vamos ter no sábado [dia 02] uma corrida com 20 crianças – 10 rapazes e 10 meninas. Cada um recebe 1.000 escudos como prémio de participação e uma medalha”, revela Tuni, confirmando que, mesmo com o cansaço que a organização desta iniciativa anual lhe provoca, ainda continua a procurar novas formas de estimular a dinâmica no município e suas gentes. E tudo isso financiado pelo próprio.
E quanto mel despende com esta iniciativa? No ano passado, com as tais 1.550 crianças, foram mais de 350 litros de mel.
Numa espécie de tanque de cimento de boca redonda, envernizado por dentro, um dos colaboradores de Tuni fazia arrefecer a calda de cana que, 4 horas depois, estaria finalmente transformada em mel. Segundo o funcionário, na sua capacidade máxima, o tanque chega a mais de 200 litros.
Durante a semana em que recebe as crianças, o alambique do Sr. Tuni interrompe a produção de grogue durante o dia – “ é a lei, criança não pode estar num espaço em que está a circular álcool”, diz o empresário – e a fornadja só volta a trabalhar ao final da tarde, quando estas já tiverem partido.
Agradecimento pelo sucesso
Feliz com o retorno que decidiu dar à sociedade como agradecimento pelo sucesso do seu negócio, Tuni explicou-nos antes que acha “justo ajudar e ensinar às crianças que ajudar é algo que todos podemos fazer. Mas também ensinar um pouco às crianças sobre o processo de fabrico de grogue e mel. Não para incentivar consumo de álcool mas, de maneira pedagógica, sobre a tradição”.
É esse desejo de dar a conhecer a tradição local e promover o concelho que levou o investidor a reservar um grande espaço da sua propriedade à criação de um pequeno Museu da Aguardente. A sala, numa cave, desta vez esteve fechada mas, ali tem em exposição réplicas, em tamanho real, de diferentes tipos de trapiche e debulhadoras, pinturas murais relatando a lenda do surgimento da aguardente e figuras históricas.
A quem possa estranhar tanta generosidade e empenho, a garantia dada pelo inovador e criativo empresário é de que não tem ambições políticas.
“Eu não tenho “escola”. Só estudei até o 2º ano [actualmente denominado 6ª classe] e por isso nunca pensei em candidatar-me a nada. Mas acho que as autoridades poderiam dar mais atenção àquilo que aqui faço”, reconhece.
E entre as coisas que vai fazendo – onde se incluem, para além dos muitos litros de grogue e mel, vinte variedades de ponches, dez tipos de licores, 12 de farinhas feitas a partir de frutas, e outras tantas diversidades de doces e compotas – está a criação de um apiário que já produz mel suficiente para vender (em favo).
Caso para pensar que, inovador como é, não estará longe o dia em que oferecerá às crianças que recebe cuscuz com nutritivo mel de abelha.
Quaresma, tempo de jejum e penitência
O Tempo da Quaresma, iniciado com as Cinzas, é o período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã (paixão, morte e ressurreição de Cristo), sendo celebrado por algumas igrejas cristãs, dentre as quais a Católica, a Ortodoxa, a Anglicana, a Luterana. A expressão Quaresma é originária do latim, quadragesima dies (quadragésimo dia).
“A Quaresma é um tempo que a Igreja nos dá para aprofundarmos ainda mais a nossa fé e a nossa vida de oração. Por meio das práticas penitenciais e de caridade e de uma vida de oração mais intensa, a Igreja nos ajuda a celebrarmos bem também depois da Páscoa. Ou seja: só pode celebrar uma boa Páscoa, plenamente, quem também viveu bem a Quaresma”, escreve no Vatican News o padre Arnaldo Rodrigues, da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Quaresma é então a preparação da Páscoa, preparação esta feita por meio de jejum (geralmente privação parcial ou total de comida), abstinência de carne, mortificações (uma antiga prática religiosa que consiste em realizar um sacrifício mental ou físico por amor a Deus), caridade e orações.
O colaborador do jornal online do Vaticano continua: “Neste período de 40 dias, algumas práticas penitenciais são importantes porque nos ajudam a fortalecer o espírito e a nossa intimidade com Deus; não é somente fazer por fazer”.
O sacerdote avança ainda que, actualmente, muitos católicos aprenderam a adaptar conforme a sua realidade, diminuindo algumas coisas que gostam de fazer.
“Quem é muito ligado à comida, pode diminuir ou deixar de comer algum prato que gosta (na quarta e na sexta não comer carne, por exemplo); não assistir à televisão; ou ainda diminuir o uso das redes sociais. (…) Procure um padre da sua paróquia para que possa te orientar sobre que tipo de exercício fazer”, recomenda o clérigo.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.