“A indústria farmacêutica quer trabalhar com legislação muito robusta, com supervisão efectiva, com monitorização continuada. Estas são as condições que atraem hoje a realização de ensaios clínicos e por isso esse é nosso primeiro enfoco nos países africanos parceiros: conseguir promover uma legislação robusta”, apontou a especialista portuguesa em Ética.
Maria do Céu Neves, antiga eurodeputada portuguesa, falava hoje aos jornalistas na capital cabo-verdiana para apresentar a formação que o BERC-Luso - projecto de capacitação ética regulamentar nos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), apoiado pela União Europeia e co-financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian - vai promover na próxima semana na Praia, com peritos internacionais e o apoio da Organização Mundial de Saúde.
Segundo a responsável, sem uma legislação robusta, como acontece actualmente nos PALOP, e num quadro de grande competição internacional para captar os ensaios clínicos – em 2019 apenas 1% desses ensaios a nível mundial foram realizados em África e metade desses concentrados na África do Sul –, “não haverá interesse” das farmacêuticas.
Para os países africanos de língua portuguesa, constituindo-se num ‘cluster’ nesta área, trata-se de um “mercado a explorar”, como nos ensaios para tratamento de doenças endémicas ou na medicina tradicional, com recurso a substâncias naturais “que podem vir a ser utilizadas como princípios activos futuros”.
“Se tivermos uma comunidade científica robusta nestes países, estes podem-se tornar parceiros essenciais, com mais-valias que não encontramos noutros países”, destacou, sublinhando a necessidade de criar as condições para concorrer internacionalmente.
“Entramos numa fase em que é enorme a competição pelos ensaios clínicos e por isso as grandes indústrias que se dedicam à investigação biomédica vão agora desenvolver as suas actividades nos países que oferecem condições”, reconheceu.
Cabo Verde, admitiu Patrão Neves, destaca-se neste processo, com a parte legislativa e a capacitação profissional “mais avançada” entre os PALOP (ainda Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau), com condições para “em breve” cumprir os requisitos internacionais.
“No contexto geral dos PALOP, é efectivamente o país que tem uma legislação mais desenvolvida. Todos os contactos que temos tido a nível político e legislativo apontam para uma grande vontade, um grande investimento do país no sentido de poder assimilar a totalidade das boas práticas internacionais”, observou.
Nesta matéria, o cenário actual, recordou, já não é o do século XX, em que os ensaios eram realizados em países subdesenvolvidos, sem legislação, permitindo processos mais céleres e baratos às farmacêuticas.
“Actualmente, a indústria farmacêutica não está interessada em trabalhar fora da lei ou com legislações permissivas”, explicou, reconhecendo que os PALOP enfrentam ainda, neste processo, a ausência de formação das organizações internacionais em língua portuguesa no continente africano, papel que está a ser assumido pelo projeto BERC-Luso.
No seu entender, os PALOP precisam de desenvolver “legislação adequada” de acordo com as regras internacionais, ter “profissionais com formação específica na área da apreciação regulamentar e ética” destes projetos, para assim criar condições atraentes para a indústria farmacêutica.
Esse trabalho, admitiu, ainda está no início nestes países, onde a realização destes ensaios clínicos a novos medicamentos e tratamentos é “muito incipiente”, com menos de cinco processos e nalguns países sem qualquer teste, “o que é normal”.
“Se não há condições legislativas e de capacitação dos profissionais para a supervisão e para a monitorização, então se calhar mais vale mesmo que não se realizem”, sublinhou.
Em Portugal, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) recebeu 142 pedidos de autorização de ensaios clínicos em 2019, um aumento de 53% face a 2018, captando 100 milhões de euros de investimentos.
A coordenadora do BERC-Luso, lançado em 2018, explica que cada euro investido nos ensaios clínicos representa actualmente um retorno para estes países de 1,99 euros, desde logo com a obrigatória requalificação dos serviços de saúde que os recebem, com novos equipamentos e acesso a medicamentos de última geração. Também pelo reforço da comunidade científica de cada país, “desenvolvendo a capacidade e massa crítica”, ou ainda pela dinamização que provoca na economia.
Tudo isto com recurso a um quadro legal “robusto”, garantindo os direitos de quem participa nos ensaios, conforme o novo paradigma das organizações internacionais que se vive desde o início do século e que rompeu com a realidade do passado: “Ou seja, os ensaios clínicos podiam ser feitos mais rapidamente e com menos custos. Mas também significava a violação dos direitos humanos e ausência de retornos para os países onde tinham lugar. Esta fase está totalmente ultrapassada e hoje há uma competição internacional para receber os ensaios clínicos”.
No primeiro ano de actividade o BERC-Luso fez o levantamento de toda a legislação nesta matéria nos PALOP, identificando as respetivas lacunas para assimilar as boas práticas internacionais. Neste segundo ano será feita a formação e capacitação de profissionais, em termos éticos e regulamentares, inclusive com a acção que arranca na segunda-feira na Praia.
Até final de 2020 cada um dos PALOP terá um grupo de cinco profissionais “formados ao mais alto nível”.
Em 2021 será feito o reforço da formação e a implementação prática, preparando os profissionais formados para serem os próximos formadores em cada país, “garantindo um efeito dominó e um efeito continuado” do projecto.